segunda-feira, 6 de abril de 2020

Flaneurs de Instagram: diário de quarentena

Quando saí da Alemanha há duas semanas, as ruelas da pequena Erfurt, capital do Estado da Turíngia, já estavam fantasmagóricas. O aeroporto de Nuremberg operava de modo improvisado, com parte da infraestrutura interditada. Ao chegar em Londres, encontrei algo excepcionalmente distante do cenário narrado em O Homem da Multidão. Allan Poe também deve estar lá com José Saramago no céu dos escritores, observando de camarote celestino essa mutação do espaço urbano moderno.
A sensação é que os “flaneurs”, aqueles descritos por Baudelaire na passagem pra modernidade (tô exibida hoje!), foram despejados e estão sem seu principal refúgio: as ruas e o movimento ziguezagueante das multidões. Aquele prazer (voyeurístico, confesso) de bisbilhotar os habitantes da cidade em seu cotidiano está bastante restrito. O supermercado (!) passou a ser o templo sagrado das perambulações. Ali há um resquício de deleitamento, embora bastante limitado. Observa-se somente os produtos mais bizarros comprados em massa para estoque e as máscaras faciais criativas pra caceta.
O que mais nos resta para espiar a intimidade alheia é o Instagram, suas lives e stories. Intimidade montada, adulterada, deveras forjada, mas é o que temos para hoje! Não interpretem mal, posto o tempo todo (só o que não tenho problemas em mostrar, óbvio). Mas não encontro por ali coisas impagáveis de um simples passeio de elevador. Saudades daqueles que resgatam discretamente a calcinha (ou a cueca) do traseiro, coçam o saco, retocam o batom por meio de caretas estranhas, limpam o salão (como meu avó se referia à higienização clínica do nariz com os dedos), batem os pés irritantemente contra o chão, apertam compulsivamente o botão do andar como se isso acelerasse a engenhoca, enfim…

O Instagram traz sempre a sensação da moça atraente, de lingerie preta, olhos bem delineados à lápis, mas que você nunca conhecerá na intimidade de calcinhas de algodão, camiseta branca da Hering sem sutiã, lendo de cabelos presos num rabo-de-cavalo mal feito e óculos no sofá. Sem apologias a um ou outro. As duas facetas têm seus fetiches. É só mesmo uma constatação honesta de que observar a vida alheia (verdadeiramente) anda meio difícil nesses últimos tempos em que nos tornamos uns botânicos de Instagram em quarentena.   



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