Se existisse um céu de escritores, José Saramago estaria mesmo por lá, bem puto da vida aliás, pisoteando enraivecido uma harpa angelical e irritante. Provavelmente, baseado no Evangelho Segundo Jesus Cristo, chamaria Deus de uma grande ingrato, vingativo e lazarento. Aquela mente genial pensou numa situação hipotética em que todos ficavam cegos e nos deu o brilhante “Ensaio sobre a Cegueira”. Anos depois, em “Ensaio sobre a Lucidez”, mostrou o que ocorreria se uma população inteira votasse em branco. Se nós brasileiros lêssemos mais, resolveríamos a dicotomia do ódio ao PT ou o voto num acéfalo nazistinha desse modo. Mas sem política. De volta à literatura. Saramago ainda criou em “As Intermitências da Morte” uma narrativa em que ninguém mais morria, e se assim o quisesse seria necessário atravessar a fronteira do hipotético país. Tudo isso pra dizer que estou aqui na minha quarentena londrina, fazendo uma reivindicação com a cúpula espiritual para que ressuscistem o Saramago. Nem ele previu que um vírus batizado com nome de cerveja deixaria a população mundial (com algumas exceções, em casos de países com governantes menos pensantes que lombrigas parasitárias) trancafiada em suas casas.
Embora caminhando rumo aos quarenta, ou seja, nem tão velhota assim, eu já vivi algumas coisas nesse mundão esquizofrênico. Peguei tuberculose. Vi um avião cair e explodir na minha frente no meio de São Paulo. Parece ficção, mas não é. Bati o carro e quebrei o eixo do veículo no dia seguinte. Perdi duas pessoas especiais em acidentes não menos estranhos. Não consigo mais escutar “Flores” do Titãs também por conta de uma perda, embora esta um pouco mais natural. Entrei este ano descobrindo segredos dos meus antepassados que sequer imaginei que pudessem existir. Foi tudo muito estranho, mas interessante. Assim, poucas coisas me surpreendem, mas este estado de emergência global está me intrigando. Nunca a dicotomia entre segurança e liberdade (de Zygmunt Bauman, outro que deveria ser ressuscitado pra nos ajudar a dar significado a tudo isso) fez tanto sentido.
Depois de terminar o doutorado, achei que fosse me debater entre a liberdade de seguir com a pesquisa seja lá em qual lugar do mundo, sem a segurança de um emprego fixo a longo prazo. Clássica. O equilíbrio entre esses dois polos sempre foi causa de angústia na esfera pessoal ou profissional. Muita segurança sufoca, muita liberdade desampara. Normal, segue o barco. Mas, ao mesmo tempo, passei a observar o dilema de nos privar da nossa liberdade pela segurança de nos manter saudáveis e proteger a comunidade. Não que meu dia a dia tenha se alterado significativamente já que há muitos anos faço home office. Mas é preciso uma rotina de distrações. E por isso precisamos ressuscitar o Saramago. Como ele daria fim a essa bizarra narrativa?
Já que isso é uma utopia, sigo com outras atividades. Comecei a anotar coisas estranhas que as pessoas fazem durante a quarentena (tem até campeonato de embaixadinhas com papel-higiênico). Logo mais publico um post de 20 hábitos esquisitos adquiridos em tempos de corona. Por hora, tenho aqui as lições introdutórias de psicanálise do Freud (tudo para manter a sanidade), o Mito de Sísifo de Camus (olha que momento pra questionar o significado da vida!) e os descolamentos do feminino da Maria Rita Kehl. Pensei em finalmente tirar um tempo para ler a Ilíada, mas a vida é muito curta. Por enquanto, isso deve bastar! Pelo menos até Saramago psicografar o romance “Ensaio sobre a Reclusão”.
Um comentário:
Excelente texto!
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