A religiosa Santiago de Compostela e o litoral da Galícia
Por Regina Cazzamatta (texto publicado originalmente na Revista Viaje Mais! Novembro 2016)
Dizem na Espanha que Deus, após terminar a criação do mundo, apoiou as mãos abertas, para descansar, sobre o norte do país. Assim teria formado, com seus cinco dedos, as cinco “rías” da Galícia, os braços do mar que avançam território adentro, rasgando as montanhas. A lenda tem uma explicação: a Galícia vive cercada de fé e misticismo desde os tempos mais remotos. E é assim até hoje. Sua capital, Santiago de Compostela, clímax do célebre Caminho de Santiago, é o terceiro ponto de peregrinação cristã mais importante do mundo, depois de Jerusalém e do Vaticano.
Essa região do norte da Espanha, às portas do Atlântico, é uma terra bucólica, de morros suaves e cidades pequenas (a capital tem apenas 100 mil habitantes), onde brota uma cultura própria, que não tem nada a ver com os estereótipos espanhóis do flamenco e de touradas. Começa pelo idioma distinto, o galego, e segue pela religiosidade. O turismo é um traço importante, mas não se resume aos andarilhos peregrinos carregados de fé e devoção a San Tiago. Turistas bem mais céticos também vão à galícia, em busca do prazer de caminhar em belas cidades históricas, como a própria Compostela; dos divinos pratos de frutos do mar; e dos passeios ao litoral de águas cristalinas, de charmosos vilarejos de pescadores e grandes belezas naturais.
litoral das ilhas cíes |
Sendo assim, não será preciso caminhar centenas de quilômetros para chegar a Santiago de Compostela, ainda que seja impossível não se contagiar com a emoção de se deparar com a catedral de Santiago, a alma da urbe. O templo é colossal, sempre cheio de fiéis de todas as partes do mundo, que fazem fila na entrada para tocar a coluna do Pótico da Glória e repetir as mesmas palavras: “Senhor, eu creio!”. Faz parte do ritual peregrino. Os devotos também se juntam na cripta para ver o baú de prata com os supostos restos mortais do apóstolo Tiago.
Santiago clicada do topo da catedral |
A história católica dá conta de que Tiago veio bater na Galícia em 38 d.C. em sua missão evangelizadora. Seis anos depois, já de volta a Jerusalém, foi assassinado. Dois discípulos recolheram o corpo de Tiago e colocaram-no em uma urna, que foi levada de volta à Espanha para ser enterrada. Oito séculos se passaram até que o santíssimo esqueleto fosse enfim encontrado por um eremita galega chamado Pelayo.
Peregrinos chegando a Santiago de Compostela |
É claro que Pelayo não tropeçou distraidamente na tumba do apóstolo. O episódio ganhou tons bem mais dramáticos. No ano de 813, o eremita viu uma chuva de estrelas cair sobre um campo e, guiado por essas luzes, foi até o local e desenterrou a ossada. Obviamente, há dúvidas se os restos mortais na cripta da igreja são mesmo de Tiago. Mas isso é uma questão de fé, e fé, como se sabe, é o que não falta em Santiago de Compostela.
Do lado de fora da catedral, o burburinho rola com intensidade nas quatro praças que a circundam: Quintana, Imaculada, Prataria e Obradoiro. Essa última ganha mais vida com a chegada de peregrinos exaustos após longas e árduas jornadas. A atmosfera de vitória e trocas de energias positivas dominam o ambiente, com cantorias e lágrimas. Ao lado da praça, está o antiquíssimo Hotel dos Reis Católicos. Recheado de pátios e fontes memoráveis, o abrigo foi criado em 1499 como um hospital para socorrer peregrinos. Paradoxalmente, transformou-se hoje em uma hospedaria chiquezinha.
Interior do Hotel dos Reis Católicos |
Ruas de Santiago durante a madrugada |
No centro histórico de Compostela, por suas ruas estreitas, proibidas para carros, é bem fácil encontrar as famosas taperias espanholas. A capital galega abriga cerca de 1.100 restaurantes e bares, um para cada 100 habitantes. A especialidade quase sempre é a “mariscada”, uma orgia de frutos do mar. O pecado é não provar. Navalhas, percebes, berberechos... são alguns dos estranhos mariscos locais que são degustados com muito azeite e uma taça de vinho albariño. Ou, se melhor apetecer, uma cerva local, a estrela da Galícia. Nenhum frutos do mar, porém, é tão tradicional quanto as vieiras, a macia carne da concha que virou o singelo ícone da cidade, e está pendurada nas mochilas dos peregrinos. Em outros países, como na Alemanha, a vieira é conhecida como “concha de Santiago”. O problema é o preço salgadinho (uma unidade pode custar até €12).
Vieriras ou conchas de Santiago |
O mercado de Abastos em Santiago é uma boa opção para degustar todas essas delícias e outras cositas más, como queijo tetilla (tetinha, em português), batizado assim por conta do seu formato de seio. Como 40% do leito produzido na Espanha provém da Galícia, dá para imaginar a qualidade dos queijos da região. Ou então o “pulpo á feira”, um polvo cozido que derrete na boca, temperado com páprica. E, na hora de adoçar a vida, nada e mais clássica do que a Torta Santiago – de amêndoas e salpicada com açúcar de confeiteiro –, acompanhada dos licores locais.
Queijos tetillas vendidos no mercado de Abastos |
A Costa Galega
Marco zero do caminho de Santiago, na costa Finisterre |
O Caminho de Santiago não acaba em Compostela, segue até Finisterre, no ponto mais ocidental da costa espanhola, a 90 km de distância. Os peregrinos encaram três dias para concluir esse trecho final da caminhada. Mas dá para ir até lá em pouco mais de uma hora de caro, ou mesmo em passeios bate-e-volta que saem da capital galega e levam a diversos pontos do recortado litoral que vai de Carnota a La Coruña. Finisterre é o pedaço mais famoso, onde está a rocha do marco zero do Caminho de Santiago. Próximo a ele fica o farol do Cabo Finisterre, de 1853. Nesse ponto, no alto da falésia, peregrinos que concluíram a jornada queimam suas roupas e amarram seus calçados surrados no penhasco. É um ato para simbolizar renivação e renascimento.
Botas deixadas por peregrinos ao fim do percurso |
Entre algumas excursões ao Cabo Finisterre estão paradas em pontos interessantes, como a ponte Maceira, no pequeno município homônimo. Toda de pedra, com arcos em estilo romano, a ponte foi construída na Idade Média para ajudar a travessia dos peregrinos. Outra belezura do trajeto é a cachoeira do Rio Ezaro, que deságua no mar em grande estilo com uma encantadora queda d´água.
Desague do Rio Ezaro |
Os passeios que partem de Santiago de Compostela também levam a La Coruña, onde o principal ímã turístico é a Torre de Hércules, o farol mais antigo em funcionamento do mundo, erguido há dois mil anos pelos romanos. Até hoje auxilia os navegantes que enfrentam o mar bravio e os nevoeiros comuns naquelas latitudes atlânticas.
Torre de Hercules em la Coruña |
Na pequena cidade de Muxía, o santuário da Virgem da Barca, uma fascinante igreja à beira-mar, merece estar no seu roteiro. Segundo a fábula, Santiago rezava no local, quando viu chegar um barco. Nele vinha Nossa Senhora, que o consolou e o motivou a continuar seu trabalho de evangelização. Muitos crentes vão até lá e passam por baixo de uma enorme pedra curvada, que simboliza o barco de Nossa Senhora, com o intuito de curar dor nas costas.
Santuário da Virgem da Barca, em Muxía |
De todos os vilarejos costeiros, o mais charmoso é Combarro, uma vilinha de pescadores, com uma ruela estreitinha à beira-mar, abarrotada de restaurantes e lojinhas com produtos locais. Barraquinhas de licores, panelas de barro, vinhos albariños e bruxinhas (curiosamente chamadas de “meigas”, para espantar os maus espíritos) são vendidos ali na minúscula orla. É daqui também que saem animadíssimas excursões de catamarãs (www.crucerospelegrinn.com) para uma voltinha na ilha do Tambo. O auge dos passeios é a degustação de mexilhões ao vapor com uma garrafa de vinho branco geladinha. Música, petisquinhos frescos, bebida trincando e a tripulação toda dançando.
Orla de Combarros, litoral da Galícia |
Combarros from Regina Cazzamatta on Vimeo.
A grande joia da costa galega são as ilhas Cíes, um pequeno arquipélago transformado em parque nacional marítimo, a 14 km da costa da cidade de Vigo, que por sua vez está a 100 km de Santiago de Compostela. São apenas três ilhotas, pequenas em tamanho mas grandes em beleza. Duas delas são interligada por uma longa faixa de areia, a Paria de Rodas, que o The Guardian classificou, em 2007, como “a melhor do mundo”. É de fato muito bonita, mas convenhamos, os ingleses não entendem muito de praia. Além dela, são mais oito arquipélago, todas com areia branca e mar cristalino que poderiam mesmo compor um pequeno Jardim do Éden se as águas não fossem geladérrimas!