É verdade que a língua alemã tem seus desafios.
Mas entre todos os imbróglios gramaticais, nada mais caótico que o uso dos
pronomes de tratamento Sie (senhor) e o Du (você ou tu). Sabe-se lá quantos
anos um estrangeiro precisa viver a cultura local para se acostumar com esses
nuances do diálogo cotidiano. A grosso modo é simples. Usamos o Sie para falar
com pessoas desconhecidas ou em situações mais formais como na universidade.
Simples nada. Não dá para chamar um punk, em Berlim, de cabelo verde e calça
rasgada de senhor. Mas a capital é uma exceção.
Até no
ambiente universitário isso gera mal entendidos, mesmo entre os próprios
alemães. Para não correr o risco de ser mal educada, fui orientada pelos
colegas (todos se chamam pelo Du, claro) a usar o pronome Sie com os
professores. Com isso em mente, escrevi meu primeiro email para um docente. “Sehr geehrter Prof. Dr. Fulano” (Prezado Senhor Professor
Doutor Fulano). Juro aos colegas brasileiros mais informais que lecionam de bermudas
e sandálias: não é brincadeira! Mas eis a surpresa. Resposta: “Liebe Frau
Cazzamatta” (Querida Senhora Cazzamatta).
Esqueci
de dizer. Quando usamos o Sie, não dizemos o primeiro nome, mas sim o de
família. Isso é o bê-á-bá da aula de alemão, mas os detalhes da prática não são
simples. Depois dessa resposta, pensei que estrangeiro é mesmo um bicho
bisonho. Onde já se viu esse exagero para se dirigir a alguém? Quem acredita
nos livros e manuais? Pois bem. Tive que escrever um segundo email para um
pesquisador mais novo, na faixa dos seus 40 anos, que dá aula de All-Star e
Camiseta. Mudei a tática: “Lieber
Herr Fulano” (Querido
Fulano). Sabe qual foi a resposta? “Sehr geehrte Frau
Cazzamatta” e na assinatura do e-mail “Herr Dr. Fulano”.
Não entendia mais nada! A partir de então, passei a seguir o conselho dos amiguinhos e me
mantenho sempre do lado da formalidade.
Em uma
festa aqui em casa, isso gerou, de novo, discussão. Após cinco anos em terras
alemãs, eu ainda tento entender o pronome de tratamento por diversas facetas. Expliquei
minha lógica de estrangeira: sempre aprendi a tratar todo mundo igual. Em casa,
nenhuma doméstica chamava minha mãe de “Senhora” ou “Dona” e elas sempre comiam
com a gente na mesa. Sim, e tomavam café da nespresso, comiam o mesmo pão, bolo
e frutas. Nada de ter o papel lixa cor-de-rosa primavera ou a “comida da
empregada”. Chamar alguém de senhor, com exceção de pessoas com bastante idade,
implica uma certa imposição, autoridade. Só advogado porta de cadeia exige ser
chamado com tanta reverência. Portanto, na minha lógica (estapafúrdia por aqui)
seria educado me dirigir a uma garçonete ou alguém que faz limpeza com o Du.
Isso mostra que eu também faria o mesmo trabalho e que não há nenhuma diferença
entre nós, embora naquele momento eu esteja no papel do cliente. Ainda mais na
sociedade alemã em que praticamente todos os estudantes ganham uma grana com
esses mini-jobs. Não há nada de “degradante” como aparenta a nós brasileiros.
Portanto, chamar a pessoa que naquele momento específico me serve um café de "Sie" ou de "senhora" implicaria, na minha mente estrangeira, um certo distanciamento, superioridade. Por que não ironia?
Até aqui todos os alemães presentes
seguiam minha argumentação e entendiam minha inquietação com o tal sentimento
de distanciamento. Mas aí que vem o problema. Pacientemente eles explicaram.
Talvez a garçonete se sinta inferiorizada e se ofenda por ser chamada de Du. É
como se ela não merecesse o tom respeitoso do Sie. Pois é! Era tudo que eu
tentara evitar.
Duas
lógicas totalmente opostas! Eu detesto ser chamada de Sie e quando algum
professor se refere a mim com o Du, acho bastante simpático. É como se ele
tentasse quebrar a formalidade e deixar o clima mais descontraído. Já uma amiga
minha alemã, acha uma falta de respeito tremenda. E a lista de momentos
estranhos não para por aí. Já imaginaram quando há diversas pessoas numa mesa e
nem todas se tratam pelo informal Du? Ou quando você está nervoso, falando com
um Deus Prof. Dr.Dr. e oscila entre Sie, Du, Sie, Du, Sie, Du? Um dia eu
aprendo, ah aprendo!
PS.: acho que já deixei uma professora triste
com isso. Quando terminei um curso, ela me ofereceu o Du, disse que não havia
mais nenhuma relação profissional entre nós e, assim, poderíamos deixar o Sie
para lá. Eu escrevi de volta, agradeci e a passei a usar o bendito Du. Mas
confessei a minha inabilidade de chamá-la pelo primeiro nome. Pra mim, ela seria
sempre a Frau Fulana. Foi algo carinhoso, eu já tinha internalizado o nome dela
como a Frau Fulana, não dava mais para mudar. Nunca mais obtive uma resposta!
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