domingo, 12 de abril de 2020

Ressureição

Em um domingo de Páscoa, ela chegou a conclusão que Natal é superestimado. Nascimento de Jesus... grande merda. Qualquer um nasce, até Bolsonaros nascem. Foda mesmo é ressuscitar, essa ela queria ver (ou crer). Apesar de extremamente religiosa, dependendo do dia, resolveu, por assim dizer, ser uma católica devota e comemorar a Páscoa apesar das condições restritas impostas pelo corona vírus e a peste enviada por causa dessa geração Easy Jet. A culpa só poderia mesmo ser deles. Se criassem raízes em seus bairros, comprassem casa, cassassem, reproduzissem e morressem no seu vaso, não espalhariam essa bodega. Mas não era o momento de apontar os dedos. Ninguém “normal” pensou em culpar os libertinos pelo surto da Aids nos anos 80.

Preparou um rango legal, polenta com frango à italiana. Abriu um vinho espanhol bem encorpado. Nada daquele vinho aguado de milagre milenar. Tinha que ser intenso. Os outros prazeres do corpo foram inenarráveis porque não tinha nenhuma pretensão em ser Anais Nin. Trancafiada em um apartamento pequeno típico das grandes metrópoles, subiu ao terraço comunitário para o grand finale.  A vista era de prédios empresariais à la Berrine e Canary Wharf, mas pelo menos o ar era “puro”. Pelo menos para o padrão paulistano. Era o momento para degustar coelhinho da Lindt com o ar livre do isolado entardecer. Mas como não se tratava de uma comemoração natalina, mas sim de uma proeza fodona, precisou complementar a reverência divina. Chocolate suíço, amaretto italiano, charuto cubano, whisky japonês (tá meio na moda e é mais barato que scotch pra quando se está meio trilili) e uma caixinha de som bluetooth. 

Um lance de escadas proporcionou a moça uma sensação de liberdade não mais vivida nas últimas quatro semanas. Terraço vazio. Colocou Doors na caixinha de som – This is the End. Não estava com o espirito catastrófico, era só uma tentativa de resgatar a memória da liberdade em descer o Delta do Mekong de barco ouvindo a mesmíssima canção. Tá, atire a primeira pedra quem nunca se emocionou com um clichezão. Um tipo de liberdade que sempre foi assim “taked for granted”. Uma criancinha indiana apareceu na janela vizinha e a encarou com ares inquisidores do tipo “quem são esses caras acampando no terraço do prédio?”. E se desvaneceu em segundos na figura de Jesus ressuscitando em Jim Morrison vociferando a letra de “When the music’s over”. “Cancel my subscription to the Resurrection, send my credentials to the House of detention, I got some friend inside”. Cancela mesmo aí minha assinatura para a ressureição, mande-a para a casa de detenção, eu tenho alguns amigos lá dentro. Sim, meus amigos estão todos trancafiados como em uma prisão. A prisão de suas famílias, suas casas, seus medos e seus vícios.  

Sentia a brisa fresca no rosto e ouvia – “What have they done to the Earth?”. Sim, o que (esse vírus) – adicionado a letra – fez com a terra? A poesia de Morrison nunca foi tão vívida. “Queremos o mundo, e o queremos agora, agora e agora”. AGORA! Jesus e essa pataquada toda foi só uma desculpa para comemorar a Páscoa, a ressureição do nosso ideal de mundo que voltará. Fronteiras abertas, destemor, viagens, encontros (e desencontros), tudo isso ressuscitará. E a Páscoa ganhará outro sentido. 

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