quinta-feira, 14 de maio de 2020

Quarentena, privadas e excrementos

Quando o muro de Berlim despencou, eu não era uma criança de fraldas, mas ainda usava um penico. Não entendia muito de geopolítica e, aparentemente, nem de banheiro. Recordo nitidamente da musiquinha épica do plantão da TV Globo e da minha avó estatelada em frente à televisão. Enquanto a sopa de feijão fervia na cozinha, ela exclamava com seus cabelos esbranquiçados para o meu tio: “viu, o socialismo acabou”!

Anos depois, já na pós-graduação e fazendo minhas necessidades no local correto, desembarquei na Alemanha Oriental. Primeiro em Leipzig, depois em Berlim. Minha avó também partira, mas pra marretar o cocuruto do Honecker – o secretário geral do partido socialista alemão – lá no além. Se fosse Gorby (apelido carinhoso do Gorbatchev) que a tivesse esperando, provavelmente ganharia um abraço. Ou um cafuné naquela mancha exótica bem no centro da cachola. Eu tinha uma sensação – deveras simplista – de que estava ali só por causa desse cara. Fim da digressão.

Muitas coisas me impressionaram no mundo germânico, vinte anos depois de saborear aquela sopa de feijão. Os caras colam na sauna peladões. Tomam sol no parque Tiergarten como vieram ao mundo. Caminham e pedalam como maratonistas. Entornam litros de breja como se fosse Bionade. Seguem a gramática do Yoda. Como essa lista mais longa que fila do Poupa Tempo é, por aqui pararei. Mas nada, nadica de nada, superou minha surpresa ou incredulidade com as antigas privadas teutônicas. Dava até saudades do meu peniquinho. Admito: provavelmente porque não era minha versão miniatura que o limpava.

Mas voltemos à surpresa do toalete. Explico! Também faço um esforço pra não perder a elegância. Os vasos sanitários (viu?) contém uma peculiar plataforma acima do nível da água. Ou seja, até que se aperte a descarga, os números um e dois ficam ali paradinhos, bem à mostra. Nu, cru, sem água ou ‘bom ar’. Agora imaginem só Nietzsche, Arendt, Adorno, Habermas e outros cabeçudos da filosofia alemã exercitando a contemplação do que é tão humano, demasiadamente humano. Flertar com a titica cotidiana me gerou incômodo, confesso. Coincidentemente, na mesma fase da vida, me apaixonei por Kundera. Em a Insustentável Leveza do Ser, achei uma explicação plausível pro meu espanto. Segundo ele, vivemos um ideal estético kitsch (palavra de origem alemã, aliás) e seguimos por aí, mundão afora, como se a merda não existisse. Desculpe, desencanei da tentativa prévia de delicadeza.  

Acho que por isso nunca debati muito o assunto em rodas alemãs. Depois de algum tempo de amizade, quando alguém me oferecia o “du” (pronome informal de tratamento), aproveitava para despejar uma lista de perguntas na pobre alma. Como o Ocidente chegou pra você? Onde você estava quando o ‘camarada’ Schabowski anunciou meio perdidão a abertura das fronteiras? Alguém da sua família pertenceu a Stasi? Mas, “qual a sua relação com o cocô de cada dia” não dá, né? 
Reza a lenda que o filho de Stalin deu a vida por merda. Prisioneiro em um campo de concentração alemão, arrumou treta com os finos colegas ingleses, que não suportavam o modo como o filho do ditador russo deixava sempre as latrinas sujismundas. Preferiu se jogar contra as cercas eletrificadas a limpar o próprio excremento. E agora, aqui privada pela quarentena, me pergunto: se a escolha de Sofia recaísse sobre Bolsonaro, ele limparia toda merda que produziu ou abraçaria a cerca elétrica? 



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