sábado, 6 de junho de 2020

Estratégias de quarentena

Uma das minhas táticas de sobrevivência durante a quarentena foi me inscrever em um curso de crônicas (vai lá, foi bem legal). Mas, paradoxalmente, nunca escrevi tão pouco. Esse blog está menos movimentado que restaurante em tempos de pandemia. Até as moscas escafederam-se. Pode ser o excesso de trabalho? Talvez, mas já encarei fases mais tensas e isso nunca me aconteceu. Mesmo imersa em um mar revolto de artigos para ler e capítulos de tese para finalizar, encontrava uma prancha velha esgarçada para uma pausa. Um tempinho pra escrever despretensiosamente sobre o cotidiano e retomar o fôlego. O problema mesmo é meu superego.

As crônicas de viagem estão suspensas por razões óbvias. Pensei então em elucubrar sobre nosso pé de manjericão. Todas as manhãs o vejo desabrochar saudavelmente, tão cheio de vida e desordem como os cabelos do Caetano em sua fase tropicalista. Todos os dias alguém grita aqui em casa: “já regou o Caetano”? Então me lembro que o Brasil ultrapassa a Itália em número de mortes por Covid. Uma sensação muito diferente em ganhar dos italianos nos pênaltis na Copa de 94. Nesse momento, a beleza pura do Caetano perde todo o sentido. 
Cogitei também em escrever uma crônica sobre o pezinho de tomate que ganhei de um amigo britânico. Acho que ele está à espera de um convite para tomar vinho com caprese, sei lá. Parece meio besta, mas não esqueçam minhas origens paulistanas. Um radicalismo urbano tão intenso capaz de sentir tranquilidade no trânsito da marginal. O oposto é este indivíduo que coloca sementes de tomate na terra, espera germinar e depois dá de presente pra alguém. Todos os dias olho o vasinho de modo cético, desacreditando que desse mato sai coelho. Desculpe pela metáfora ruim, estou deveras enferrujada. Se dessa planta nascer tomates, sentirei uma explosão radical de vida, mesmo trancafiada em um apartamento na capital britânica. Mas o lapso de beleza rapidamente sucumbe, quando o menino Miguel perde a vida em Recife pela falta de sangue na veia de uma madame com ideias provavelmente inferiores a de um vírus. 
Outra ideia de post foi uma recomendação da série Normal People (BBC iPlayer). Foi uma das melhores que vi nessa imensidão de possibilidades e olha que não assisti poucas. Confesso sim que há um fator importante de identificação com os protagonistas, mas isso não invalida a dica. É bonito de ver os conflitos de um relacionamento que se inicia prematuramente na escola, passa por diversas fases e mutações, idas e vindas e todo o desenrolar de uma juventude. Pra arrematar a nostalgia, Dublin é um dos panos de fundo da narrativa. Mas qual o sentido de escrever sobre romances, quando a violência contra a mulher aumentou 35% durante a quarentena?

Senti um certo lirismo também ao estudar novas crateras da lua com o telescópio. Discuti com amigos no WhatsApp se a melhor trilha sonora do videozinho gravado de forma improvisada foi mesmo Elton John. Há quem sentiu falta do David Bowie. Entendo, gosto mesmo de uma polêmica. Quis escrever então sobre essa maneira alternativa de viajar, experimentar algo novo do seu próprio terraço. Só fazíamos observações em fases de lua cheia. Resolvemos tentar em outros períodos quando a escuridão restringe nosso campo de visão, mas ressalta sombras e nuances de crateras até então despercebidas. Foi como descobrir bares diferentes ao invés de voltar para matar a saudade dos favoritos. Agora, de novo. Desculpe a repetição. Mas como meu superego me permitiria narrar minha tentativa de me relacionar com o universo quando o mundo e o Brasil está cheio de acéfalos terraplanistas? Ou pior, quando o verme força a cloroquina, sem nenhuma evidência científica, até em pacientes assintomáticos no SUS?
Poderia continuar páginas a fio, mas quero poupá-los dessa lengalenga repetitiva como no mito de Sísifo. Após pisar na bola com Zeus, o cara foi condenado a empurrar pela eternidade um pedregulho até o cume de uma montanha. Quando chegava lá, a rocha escorregava ladeira abaixo e sua sina recomeçava. Estaca zero. Foi com base nessa lenda que Camus (o filósofo e escritor francês) descreveu o conceito do absurdo. Muito chulamente (foi mal aí filósofos acadêmicos) seria a ruptura entre a mente que deseja e o mundo que decepciona, essa contradição, esse universo fragmentado. Aparentemente não tem mesmo como fugir do absurdo, mas há meios de driblar a falta de sentido pela revolta, liberdade ou paixões. Afinal de contas, quando Sísifo desce a montanha de mãos abanando (mesmo que momentaneamente) ele está liberto da tal pedra. Durante essa minha descida tento encontrar algum entusiasmo cotidiano. É também um meio de manter a sanidade.

Nenhum comentário: