sexta-feira, 17 de julho de 2020

Semântica é o seu c...

Essa semana, covid à parte, me aconteceu algo bem bizarro. Sequer posso dizer que foi surpreendente porque essas sutilezas são parte do cotidiano feminino. Sutilezas, aliás, que boçais de plantão teimam em classificar como mi-mi-mi. Respiro fundo. Não é ‘questão de semântica’ ou análise de discurso de conversa de elevador, mas uma sensibilidade para nuances da nossa cultura patriarcal. “Eu ajudo” é uma ova, só para citar uma clássica. Notem que estou tentando usar menos palavrões para expressar emoções negativas! 

Vamos aos fatos. Passei a semana ocupada com a resposta para um referee. O artigo já está aceito, mas o/a revisor/a sugeriu algumas reflexões bastante pertinentes. Fui chamada de ‘positivista’ o que me arrancou boas risadas. Alemanha me colocou na linha! Mas esse não foi o problema! Estou só divagando para variar. Pedi na Amazon um livro sobre jornalismo internacional . Dois dias depois, fui resgatá-lo na caixa do correio no hall de entrada do prédio. Durante aquele ‘small talk’ irritante, típico do Reino Unido, eis que o concierge me pergunta: “É um livro de receitas”? Acho que olhei estranho porque ele logo arrematou – “receitas para matar o marido”?

Como? Veja, o sujeito (branco, de meia idade) é um cara simpático, gente boa. E eu não tenho nenhuma relação com o porteiro semelhante a da personagem Maggie (Cristin Millioti) em “When the Doorman Is Your Main Man” (aliás, assistam “Modern Love” na Amazon, baseado na coluna do NYT). Em outras palavras, caguei! Perdi a linha de novo. Será o último palavrão do post, juro. Um balão se abriu na cena da minha história em quadrinhos. Letrinhas emaranhadas saindo da minha boca suja:

“Tiozão, eu tenho um doutorado em comunicação, já publiquei dois livros em alemão, dezenas de matérias, recebi uma bolsa de estudos ultra concorrida, trabalho em duas línguas que não a minha materna, dou aulas na universidade, passo o dia revisando artigos entre outras atividades e...”. E soprei a resposta no ar com um suspiro de quem não está nada interessada em dar aulas de desigualdade de gênero e/ou estereótipos. Foi só uma brincadeira pueril. Eu sei. É sempre só uma gracinha. Lembrei de uma entrevista com a artista Rafa Mon contando como ela lida com o mundo pelo fato do filho (ainda na pré-adolescência) gostar de se vestir de mulher. Como, às vezes, é mais fácil se referir à criança como “minha filha” para não ter que dar explicações e aulas de diversidade para o taxista.
Porque enche o saco. Enche mesmo. Não dá para passar a vida respondendo aqueles comentários sempre incômodos que se naturalizam como bananas em bananeiras. O tio avô perguntando no Skype para você – garota – se o almoço está quase pronto. Só para puxar um papo, sabe? As visitas que perguntam à mulher da casa (claro!) onde está o detergente. Porque elas só querem ajudar e qual homem teria esta informação? A lista é longa e minha reação sempre incrédula. Porque o quão limitada é a cabeça de uma pessoa para achar que mulheres priorizam o almoço, a organização da casa ou o livro de receitas? Será que o concierge diria isso se o livro chegasse para a filha dele? 

Uma vez, um pesquisador alemão me perguntou como andava a vida. Respondi à época, ainda estudante, como a montanha de deveres de casa estava me tirando o sono. Para cada matéria finalizada, precisávamos escrever um trabalho (em alemão, Hausarbeit). Em tradução literal, seria ‘trabalho de casa’. A interlocutora na frente dele era euzinha aqui, uma moçoila. Adivinhem qual foi a primeira associação dele? A de que havia muitos afazeres domésticos a serem resolvidos no meu apartamento. Juro! Será que ele faria essa conexão se eu tivesse um membro sem osso balangando entre as pernas?

Quando volto ao Brasil, as pessoas pouco me perguntam sobre viagens, alunos, perrengues, pesquisa, literatura, filmes, burocracia, medos, segredos, vontades, sei lá eu. Tudo se resume a comentários sobre minha aparência (tá mais gordinha ou mais magrinha), as unhas que não passam por uma manicure há anos e sobre meu útero. Sim, sabemos, os emaranhados sociais são muito mais complexos e intrincados que isso. Mas o que irrita absurdamente é o reducionismo. Crianças podem ser, sem dúvida, interessantes. Cozinhar ouvindo música alta, tomando uma, também é incrível. Conheço inúmeras mulheres com vasta experiência de vida – muito além dos clássicos papeis sociais – que também arrasam com os pequenos e ainda poderiam ser chefs Michelin. Meu incômodo está com essa cadeia de associação simbólica reducionista e simplista do feminino, como se todas nossas possibilidades fossem três ou quatro caixinhas bastante pré-determinadas. Me enche o saco, mas também me dá pena ver um mundo povoado por concepções e ideais assim tão restritos. 

Ps.: Para mim o machismo só irrita. Para muitas outras mulheres o machismo mata. Mas isso é discussão para outro post.




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