domingo, 25 de outubro de 2020

Partiu pro Paraguay!

Cada um lida com suas perdas como pode. Os Cazzamattas, muitas vezes, enfrentam dores com piada. Quando as lágrimas caem, alguém tira alguma besteira fenomenal da cartola para transmutar o choro em gargalhada. Então, a pessoa que fez a graça também se emociona e as horas seguem nessa mistura de piadas, anedotas, angústias e preocupações. Típica situação dos nossos velórios, dos mais traumáticos pelo menos. Não é difícil traçar as origens desse lado tragicômico da família, bastava olhar pro “capo” (carinhosamente atribuído ao Sr. Júlio Cazzamatta). Ele merecia um velório de pelo  menos 72 horas de piadas. Netos e filhos recontando histórias e polêmicas das mais diversas perspectivas (Covid de merda). Não darei conta aqui, somente na compreensão de neta, de recontar toda sua figura complexa e caricata. Precisava ter ao meu lado todas as outras pessoas que conviveram com ele pra remontar esse quebra-cabeça. Natural de Salto de Itu... Ops, quem o conheceu que complete a frase: “Salto de Itú é o seu c...”. Spoiler: se você não gosta de palavrão, pare de ler o post nesse preâmbulo introdutório. É muito difícil reconstruir histórias de Júlio Cazzamatta com uma linguagem educada. Mas prometo que tentarei. Logicamente só narrarei aqui os causos mais ou menos publicáveis. Acabo de escutar sua voz: “Rê, vai cagar”. 

Começo com um diálogo hilário. Curta explicação. Seu Júlio era um sujeito sem papas na língua, mandava todo mundo tomar no c... Blasfemava até com secretária eletrônica. 

- Alô, gostaria de falar com o Rodrigo, por gentileza. 

- Não tem ninguém com esse nome aqui! 

- Tem, o namorado da Regina. 

- Minha neta não namora nenhum Rodrigo. É o Anacleto.

- Ah, então eu acho que ela trocou de namorado.

- Ah, vai tomar no c..... fdp... 

Essa breve e cômica conversa telefônica aconteceu entre minha sogra e meu avô. Porque ele encasquetou que meu namorado era Anacleto e pronto. Vinte anos depois, a história se repete com minha prima Carol. A pequena já namora um cara há quatro anos. O Jabaquara, segundo meu avô. Só que o garoto se chama alguma coisa com “m”, Mohammed talvez. Agora é inevitável, quando conversamos nos referimos ao “Jabaquara”. Mas de volta ao passado. Quando conheceu o Rodrigo, foi simpático, o apelidou de Anacleto e depois de tomar umas aqui e acolá saiu vociferando e gritando – “vou matar esse fdp que leva minha neta pro meio do mato”. Chegamos assustados na sala, a família inteira rolava de rir. Meu avô parecia o Sputnik quando perdia a batalha para o Sonic e pulava em cima das calças. Minha mãe só arrematou – “pai, para de encher o saco, eu que pago minhas contas e cuido da minha filha” (limpei os palavrões da frase)! Ela só não ficou mais brava do que quando ele dizia que era doutor, provando com um papelzinho amassado e amarelado nas pontas.

A ‘ameaça de morte’ virou piada entre eles. Estranhamente, era uma forma de demonstrar carinho. Existia agora uma anedota, uma história que os unia. Você só conseguia se aproximar se o mandasse tomar no c... Aí sim, ele ficava feliz e ia te fazer uma caipirinha de caju. Na Copa de 94, enquanto a família inteira sofria em frente à TV assistindo Brasil e Itália, ele passava com a corneta torcendo para o Taffarel frangar. Até todo mundo mandar ele pastar e ele cair na risada. Engraçado é que ele odiava italiano. “Cambada de fdp”, dizia. Contou uma vez que o pai dele (meu bisavô) tinha um bar e ele era obrigado a ser educado e respeitar aqueles “italianos de m”... A irônica de tudo isso é que nosso último encontro foi justamente na Itália. Achei que teria pelo menos uma ‘saideira’ nesse fim de ano. Desde março tento chegar no Brasil sem muito sucesso. Mas não deu tempo. Completou 83 anos na terça-feira (20 de outubro), só falava no porco que assaria para sua festa do sábado (24). Deu um piripaque na quinta e zarpou no dia da própria comemoração. Não deu tempo de nada, nem de Natal, nem de festa de aniversário, nem de velório. Apesar dos sete meses de quarentena, pelo menos viveu e comeu até o último minuto do segundo tempo. Só pensava em birita e leitão. Nem sei como passou dos oitenta fritando mortadela todo café da manhã e comendo com uma colher de sopa de manteiga. “Não sou burro pra comer alface”, resmungava. Nem vou reproduzir os comentários sobre pizza de escarola. Nunca soube se ele acreditava em Deus ou não. Mas, certamente, a forma de relacionamento com o cara lá em cima também sempre foi meio peculiar: “Porco Dio”, blasfemava ao quatro ventos. Era sua reza. 

Um dia, enquasquetou que iria construir uma capela na chácara. Rimos e achamos que fosse mais uma de suas maluquices. Tinha sonhado com a mãe dele (a bisa Argentina, magrela com olhos de bolinha de gude, pelo pouco que lembro). Pois bem. O protótipo de igrejinha está lá de pé até hoje. Acho que as pessoas iam lá para rezar, namorar, bater papo, sei lá. Outra vez ele levantou convicto que era comunista. A gente ria de não se aguentar. Parecia mais lunático do que quando queria comprar “liras” para visitar a Itália. Não sei quem contou que o Euro era a moeda única do bloco há uns bons anos, mas provavelmente deve ter escutado um “vai tomar no c...”. Daria para fazer um post com as manias estranhas dele. Quando peidava (roncando ou não) no sofá da sala, abria o olho e dizia “foi a Suzi” (a cachorra). 

Quando eu era criança resolvi fazer o número dois no guarda-roupa da minha avó (fui uma garota criativa). Depois de umas horas, começou o auê por causa do cheiro. “Só pode ser macumba”, gritava minha avó. “Onde estão os cachorros”, perguntavam todos. A única pessoa excêntrica o suficiente para resolver aquela situação sem me incriminar só podia mesmo ser quem? “Foi o vô Júlio”, arrisquei convicta que daria certo. Não deu. Mas rimos. Bastante, até hoje. 

Ainda lembro dele gritando “Glühwein” em Weimar, dançando bolero sozinho na neve, curtindo pequenos momentos aqui e acolá. Azucrinando pra pedir uma cerveja clara, outra escura e um terceiro copo vazio para ele misturar ambas! Como ele era bastante politicamente incorreto, dava um certo alívio dele não se comunicar em alemão. Só dava um jeito quando se tratava de cachaça. Comemoramos um ano novo na torre de Berlim. Cada casal tinha direito a uma garrafa de vinho. Mas não parava de chegar garrafas na nossa mesa. Comecei achar aquilo tudo estranho e dá para imaginar se tinha dedo de alguém? Seu Júlio deu uma gorda caixinha ao garçom quando apertou sua mão para dar boa noite. Discretamente, sem que ninguém percebesse. Do mesmíssimo jeitinho fazia com os netos aos domingos! Acho que deixou esse mundo dizendo “vão tomar no c... todos vocês”. O céu ganhou mais um doutor. Vai chegar lá em cima dando caixinha pra Jesus acelerar a transformação da água em vinho. Ou vai gritar logo um “porco dio” porque nesse 2020 Deus tá mesmo merecendo. 

Foi um avô „fora de série“! 



12 comentários:

Unknown disse...

Em que pese o triste momento, dei muitas risadas com esse texto da Regina.
Fique COM Deus Sr. Júlio.

Unknown disse...

Rê, sou eu, Luis (sogro)

Patricia disse...

Infelizmente não cheguei a conhecê-lo pessoalmente e mesmo assim gostava dele.
As histórias que a Tânia me conta e a maneira de falar, são muito parecidas com as minhas.
Meu carinho por vcs!

Unknown disse...

Caramba num tô acreditando até agora convivi com esse velho maluco quase 20 anos um verdadeiro ícone.Agora fudeu com quem vou brigar,brigávamos muito mas adorava o jeito dele...
MEUS SENTIMENTOS A TODA FAMILIA

TÂNIA REGINA disse...

Nossa Regina o dia foi muito difícil hoje! Essa família não será mais a mesma sem o seu avô! Mas eu confesso que estou chorando de rir com seu texto.Foi genial.

Natalia Nicolau disse...

Poxa vida eu e o João tínhamos a esperança de reve-lo, pois tivemos o grande prazer de conhecê-lo. Pessoa Alegre, ativo com seus 83 anos, tivemos o privilégio de passar alguns momentos bem divertidos ao lado do Sr. JÚLIO.
Que Deus conforte a todos os familiares. E bela homenagem Regina. O que temos que ter são as boas lembranças, pois a saudade será eterna.

Unknown disse...

Eu e Alessandro tivemos o grande prazer de conhece-lo un homem Alegre, brillante,vai com Deus sg.júlio,que Deus conforta todos os familiares.

paulo villar disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
paulo villar disse...

Por volta de 1975, nossas familias com parcos recursos, partilhávamos um kitchnete na Praia Grande - somávamos 09 pessoas e se juntaram ainda alguns parentes do Rio. Seu Júlio caprichou na cachaça aquele dia inteiro, iniciando antes do meio dia. Às 10 horas da noite, vestiu as calças sobre a sunga e vociferou "- VOU PRO PARAGUAI." Foi um inferno dissuadi-lo, meu pai teve que segurá-lo.
No dia seguinte, quando outro tio arrumava o minúsculo apê e todos já rolavam nas areias. Seu Júlio acorda e pergunta ao tio Milton."- Cadê todo mundo, catsu."
"-Foram pro Paraguai."
Seu Júlio não lembrava o que aprontara na noite passada.
R.I.P. Julião.
PS Domingo 25.10, No velório quando o padre iniciou-se oracoes rimos sutilmente sob as máscaras da covid19. Ele detestava padrecos.

TÂNIA REGINA disse...

Bela história Paulo !!

Ana Cazzamatta disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ana Cazzamatta disse...

Boa tarde, obrigada pelas palavras, nós da família queríamos saber quem é, obrigada!