quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Londres, mudanças e um baú de inutilidades sentimentais

É difícil fazer a vida caber em uma mochila. Ainda mais quando se envelhece. Ao sair de casa há dez anos, enchi duas malas e segui viagem. Na verdade, deixei com muito zelo tudo que estimava na casa da minha mãe. Levei coisas que poderiam ser deixadas pelo caminho, sem importância. Com o passar dos anos, era até interessante visitar o Brasil e reencontrar objetos que eu mal lembrava da existência no meu dia a dia. Deixei-os guardado porque um dia foram importantes. CDs dos meus dezesseis anos, agendas da adolescência cheias de sonhos e intrigas, vestidos longos de festas antigas, textos da faculdade, livros, retratos do primeiro mochilão, bichos de pelúcia, presentes antigos.

Anos depois, percebi que tinha envelhecido – muito – ao dividir o quarto com uma estudante de mestrado, durante uma conferência do DAAD, em Jena, na Alemanha. Ela me contava como a Bauhaus tinha no programa obrigatório seis meses de estágio no exterior. A moça planejava deixar Weimar por um semestre e ir a Nova York. Parecia tudo muito incrível quando me bateu aquela preguiça de imaginar ter que empacotar meu apartamento em Weimar, dar tudo, reduzir a vida novamente a duas malas. Fiz o mesmo, anteriormente, em duas cidades diferentes – Bonn e Hamburgo – mas a minha base sentimental ficara intocada em Weimar.

Até que chegou mesmo a hora de partir. Deixar a vida na Alemanha em standby. Chamei os amigos e me desfiz sem grandes problemas de bolsas, sapatos, casacos. Tudo bem, confesso que mandei uma caixa de 30Kg para casa da minha mãe com livros que não eram mais assim tão essenciais naquela etapa da vida. Ainda assim, aquela garota que chegou com duas malas, estava mandando um caminhãozinho pra Inglaterra. Oito anos. O baú sentimental aumentava. Tudo se ajeitou por um ano e meio até a próxima mudança. Envelhecemos, mas não ainda ao ponto de irmos para um apartamento maior no subúrbio. É irracional, mas pagamos caro para ficar numa caixa de sapato londrina, no caos urbano. Basta um pé de manjericão para chamar de meu jardim. Achei que tivesse sufocado a paulistana em mim, mas não. Haverá sempre essa eterna relação de desejo e repulsa pelas grandes metrópoles. 

Agora, prestes a mudar mais uma vez, fico olhando com cara de incógnita e coração partido para uma série de objetos espalhados ou escondidos nos cantinhos do apartamento. O que eu faço, por exemplo, com um telescópio do tamanho de uma bicicleta? Não é meu, foi um presente para o marido. Mas onde eu estava com cabeça quando inventei isso? Em Weimar? Só pode! Vi que, à época, ele olhou meio incrédulo, mas passamos boas noites fotografando a lua e tomando Glühwein a menos vinte graus na escuridão do inverno. Mas as coisas mudam sem pedir licença e Londres não é exatamente um lugar ideal para um telescópio: o que falta de espaço, sobra em iluminação pública, nuvens e poluição. Nem a NASA deve localizar uma mísera estrela aqui. Com muita sorte, talvez uma luzinha vinda dos edifícios de Canary Wharf. 

E minha coleção de pedras? Não é piada, são pedras mesmo. Uma vez vi umas na casa do Goethe em Weimar e achei uma baita ideia. Puta souvenir barato. Recolhi pedrinhas em vulcões – Etna, Vesúvio, Stromboli –, corais desajeitados de diversas praias ou versões salgadérrimas do mar morto. E ai de quem falar que é tudo inútil! E os pares de esqui num país que nunca neva? É tão atípico que quando cai uns flocos a mais (como nesse inverno) o Reino Unido entra em colapso. Mal tinha leite e ovos no supermercado com o caos no transporte. Vender? É uma opção. Mas e o significado de ter aprendido, praticado, tomado uns tombos, descoberto a melhor montanha perto de casa até percebermos que estávamos prontos para ser donos dos próprios esquis? Em uma cidade onde é uma fortuna pagar pelo quadradinho da garagem do seu carro, imagina a existência de um sótão para esperar pela próxima nevasca.


A coisa só vai piorando. Como levar uma versão artística enorme e pesada do Kamasutra? Já sei que há absolutamente tudo na Internet e nem o Senhor Miyagi, o Yoda (se pensasse em sexo) ou um professor de yoga devem conseguir por em prática todos aqueles malabarismos entre os lençóis. Mas comprei na Thalia, em Weimar, pro Natal! E por falar em celebrações cristãs, tem também todas as xícaras das inúmeras feirinhas de Natal, de muitas cidades, por oito anos! E os copos de cerveja adquiridos ou roubados a cada Biergarten ou PUB? Minha coleção de bolsas da Berlinale, telas de pinturas, enfeitinhos natalinos? Porque as lembranças não fazem parte do extremo necessário? Ando com medo de digitalizar a vida. Olho pros meus dois DVDs favoritos – A Insustentável Leveza do Ser e Cinema Paradiso – e sei que estão disponíveis na Internet. E todos meu romances que poderiam ir pro IPad. Só que não. 

Londres é como aquele sujeito/a possessivo/a. Você é seduzido sem se dar conta, acredita que até possa ficar, mas com condições muito claras! Fique, até adormeça ao seu lado, mas livre-se do seu passado e tudo que esteja associado a ele. Pior é que ficamos meio putos, mas aceitamos os caprichos da criança mimada. Como se algum desejo tivesse lá mesmo explicação. 

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