Sete anos se passaram desde a primeira vez
que vimos o Liffey correr por Dublin. Como estaria a cidade desde que a
deixamos? Embora tivéssemos intimidade com aquelas ruas às margens do rio, com
aquela chuva fina e brisa gelada, receávamos não encontrar tudo do jeito que
deixamos. Afinal, não só as pessoas mudam, as cidades também se transformam.
Claro que muita coisa ainda estava lá, do mesmo jeito que James Joyce descreveu
no começo do século 20, do mesmo jeito que vimos há longos ou curtos sete anos.
A movimentação na Grafton Street, as mesmas lojas e o murmurinho de pessoas na
ponte O´Connell, grupos de estudantes em frente à Trinity College e até mesmo
os canais. A tradicional hospitalidade irlandesa também não desapareceu. Logo
após deixarmos o aeroporto, uma garota de sotaque particular nos deu seu tíquete do transporte público irlândes, válido por três dias. "Estou
indo embora, mas ainda tem 24 horas para vocês pegarem os
Luas, Darts e ônibus", disse sem tentar vender o passe.
Não fosse a tal garota, talvez não tivéssemos
resolvido ir até Howth, um vilarejo portuário ao Norte de Dublin. Costumávamos
ir à vila nos finais de semana, passeávamos pelo porto, tomávamos sorvete, olhávamos
as gaivotas. Por lá pouca coisa tinha mudado. A sorveteria que trabalhei por
dois finais de semana estava pintada de verde e rosa, o mesmo sebo de livros
ainda tinha aquele cheiro de pó e o vento continuava cortante ao longo do cais.
Na volta, o ônibus 31, sentido Lower Abbey str., passou pelo bairro de Raheny,
onde morávamos naqueles tempos. Já tínhamos decidido não ir até lá, pois era
uma área distante do centro e não tínhamos muito tempo para
sentimentalismos.
Naquele sobrado, há sete anos, uma senhora
irlandesa recebia estudantes. A Dympna levava seu trabalho a sério. O
jantar era sempre servido às 18h30, sopa, toastes de alho e manteiga, salada e
um prato principal. Até às 20h, ela ficava na cozinha, conversando com os alunos
com seu leve sotaque irlandês. Sabia de tudo que se passava no bairro, até
mesmo se tínhamos visitado a igreja ou a biblioteca local. Muitas vezes, Sean,
seu marido, chegava do pub, abria a porta da cozinha com as bochechas vermelhas
de tanta Guinness. "Não sobrou nada para você", dizia ela. Apesar do
seu temperamento, nos tornamos amigas. Mostrava fotos da minha família, ela
falava mal do seu futuro genro, um sujeito que, segundo ela, só pensava em
futebol e era caixa no supermercado Tesco. Quando estava mais eloqüente, até
respondia nossas perguntas sobre a independência da Irlanda. Olhava para a
porta de entrada da casa, verificava se o marido não estava por perto e
arrematava: “o Sean não gosta que eu fale isso, mas, se não fosse o IRA, estaríamos
até hoje esmolando por batatas”, dizia. Mesmo adoentada - ela tinha acabado de
se tratar de um câncer e ainda usava peruca - a Dympna continuava a lotar o lar de estudantes, apesar da reprovação familiar.
Olhávamos para a casa e relembrávamos de
todos esses momentos. Observamos a janela do quarto onde dormíamos. Dava para
ver, apesar do reflexo do vidro, a parte detrás da televisão sobre a mesa.
Aparentemente até a disposição dos móveis estava a mesma. Algo me dizia que a
Dympna não morava mais lá. Em frente a porta de entrada, folhas amarelas rolavam
no chão e denunciavam a chegada do outono. Aquela cena não era comum há sete
anos. Uma vizinha abriu a porta, entrou no carro. Cogitamos perguntar sobre os
moradores da nossa antiga casa, mas achamos um pouco fora de propósito. Sem especular
mais, decidimos tomar uma Guinness no Cedar, um pub bem local, onde íamos
durante a semana à noite, para arejar a cabeça depois dos estudos. Lá nós
passamos a noite de Réveillon de 2004 para 2005. Dois estrangeiros, há menos de
oito horas no país, com um monte de irlandês bêbados, celebrando a chegada de
mais um ano!
Ao entrar no Pub, encontramos o Sean,
sentado no sofá entre dois amigos, com uma Guinness em mãos (claro!). Ele
assistia a final do golfe na TV. Pensamos em ir embora, mas tudo parecia muita coincidência
e resolvemos falar com ele. Preparamos bem os ouvidos, afinal o sotaque dele
sempre nos deu calafrios (tink, righsch). Ali, no mesmo pub de sempre, ele
perguntou estonteado "como vocês se lembram de mim"? Fomos apresentados
a todos os locais como os brasileiros que chegaram da Alemanha para revê-lo.
Entre uma discussão e outra para ver quem pagaria a próxima rodada, recebemos
todas as atualizações do bairro. O barman John foi afastado por problemas de saúde
e a Dympna não morava mesmo mais naquela casa!
Eu sabia! Ela nunca permitiria aquelas
folhas melancólicas rolando na frente da casa dela. No mesmo mês que voltei para
o Brasil, em setembro, ela faleceu. A notícia veio dura e seca. Sem eufemismos
como “she
passed away”. O marido disse logo, curto e grosso, apesar
da voz embargada: “she died”.
Embora ela tenha dito que precisasse ir ao hospital naquele período, não esperávamos
o pior. Mesmo do seu leito, ela ainda coordenava o jantar, que as filhas tinham
de ir deixar para os estudantes na sua ausência. Como contou o Sean, ela foi ao
casamento da filha com o fanático por futebol e morreu sete dias depois. Tudo
isso em um curto espaço de tempo, durante meu retorno. Jantamos com ele no dia
seguinte, em Raheny, onde ele mora já há 60 anos.
Depois da sua morte, a Dympna ganhou mais três
netos, Luke, Rebeca e Jessica. Primos dos nossos velhos conhecidos Christine e
Steven, agora dois pré-adolescentes. Acho que a Dympna está metida nesse monte
de coincidências, talvez lá do céu, organizando o acaso da nossa visita. Dublin
estava lá com pequenas mudanças, as eternas ruínas de igrejas medievais, enquanto
seus habitantes iam e vinham.
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