A cidade é uma boa opção para um passeio de fim de semana, um aconchego bucólico de outono quando cansamos da caótica e intensa moça londrina. Mas é difícil desassociar o destino no condado de Cambridgeshire com seu clima estudantil e os nomes mais cabeçudos da história inglesa. Tanto que um grande número de colleges compõe a lista dos pontos turísticos mais visitados por aqui. Ao pisar no centro histórico, a capela da King’s College domina o reino do conhecimento (e estampa os panos de pratos mais bregas do interior britânico). Um ícone da arquitetura gótica, com vitrais coloridíssimos e teto de abóbodas brancas, é um must-see dos guias de viagem. Mas, diferente de outros países europeus, a universidade aqui não mantém as portas abertas para a sociedade civil. Well, ao menos que se abra a carteira! Em Berlim, podemos entrar na Humboldt, passear pelos corredores, admirar os dizeres de Marx gravados no mármore sem nenhum problema. Por outro lado, em Cambridge, o hobby dos porteiros é barrar visitantes na entrada como se fossem homens-bombas no Heathrow. Há inclusive histórias constrangedoras de professores questionados à entrada por não se encaixarem no padrão de vestimenta “lorde inglês”. Fato é que o total de 31 colleges, embora nem todos abertos à visitação, pode ser um problema pro bolso.
Ou seja, o melhor jeito para bisbilhotar tudo sem ir à falência é arrumar um amigo meio gênio que seja aluno ou pesquisador da universidade. Outra possibilidade é assistir gratuitamente ao famoso coral da King’s Chapel, que se apresenta todos os dias às 17h30. Pausa. Escuto a voz da minha mãe resmungar do outro lado do oceano: “Deixa de ser miserável, menina”. Voltando. Uma vez driblei o custo da entrada sendo convidada para um casamento na Kings. Parece chique, mas quem me visse rumo à festança num busão da Flixbus reconsideraria o comentário! Dito isto, foco no casamento. Tive problemas em me concentrar na cerimônia e ao mesmo tempo deslumbrar a arquitetura, vitrais e afrescos. Na real, não consegui focar em nada, preocupada com o futuro dos pombinhos. Explico. Há uma belíssima estrutura de madeira em relevo que separa a ante sala do coro da igreja. Pra chutar o pau da barraca é um “biombo” mesmo daqueles de quitinete na praia, embora a palavra não faça deveras jus ao requinte de Cambridge. Fato é que a tal divisória foi construída para o Henrique VIII (o rei mulherengo casado OITO vezes). As iniciais do monarca e da sua segunda esposa, Ana Bolena, estão cravadas ali para a eternidade. Vejam se concordam comigo. O sujeito rompe com o vaticano só pra levar a moçoila pra cama (olha o nível da motivação) e depois manda decapitá-la. Vocês casariam ali por mais que tivessem vínculos com o college? Só consegui parar de pensar na impulsividade de nossos desejos, quando a porta principal da catedral abriu para os noivos saírem. É uma ocasião raríssima. Raios de sol invadiram o corredor com o casal deixando o altar e as iniciais H&A mandando lembranças às nossas manias de romantização.
Já extrapolei o tamanho do post e nem mencionei os outros colleges. Exatamente por isso que existem os guias de viagem! Rá! Há muitas lojas na urbe para adquiri o seu, mas o destaque é mesmo as livrarias da University Cambridge Press com bons descontos por títulos. Depois de se sentir mais inteligente (ou um asno mesmo) rodeado por tanto conhecimento por metro quadrado, reforce o sentimento suscitado na Trinity. Não será difícil localizar a faculdade com centenas de pessoas fotografando uma árvore (aparente inofensiva) no jardim. É a descendente daquela que atirou a maçã na cabeça do Newton. Sim, o aluno mais famoso da instituição. Diferente de Adão, o mandachuva da física aparentemente não mordeu o fruto proibido e sublimou sua energia sexual para as leis da gravitação. Morreu virgem segundo a lenda. Cada um com as sua motivações.
Stephen Hawking se deu melhor. Não só se casou, como também teve um caso com a enfermeira-cuidadora. Há dois anos, pouco antes da sua morte, caí de paraquedas em uma palestra para comemorar seus 75 anos em um dos auditórios de Cambridge. Estava tão compenetrada analisando a engenhoca da Intel que o permitira falar e não me dei conta do antigo romance. Descobri o envolvimento dos dois ao ver o filme baseado no livro da ex-mulher. Deveria fazer um jornal de fofocas universitárias! Embora nesse caso, nada extraordinário, todo mundo ficou amigo pro resto da vida – a mulher com o novo marido, Hawking e a enfermeira. Tudo muito British e civilizado, nada de dramalhão italiano, com mulheres enfurecidas se banhando em fontes romanas.
Enquanto Newton era um membro da Trinity, Hawking pertencia à Gonville and Caius. A estrutura é diferente da que estamos acostumados. Os colleges têm mais a função de um clube acadêmico, universitário. É uma marca, onde os estudantes moram, fazem refeições, frequentam festas e têm tutoriais. As aulas são em prédios da administração geral para integrantes de diversos colleges em conjunto. Parece confuso, mas a ideia nem é de tudo tão mal. Veja, os pombinhos que se casaram na King’s pertenciam à mesma instituição, mas o noivo é físico, a moça psicóloga (por enquanto, com a cabeça ainda sobre o pescoço). Assim, há uma garantia da interdisciplinaridade e as pessoas não interagem, conversam ou dormem só com seus pares. Uma importante distinção são os tutoriais, as orientações de pesquisa. Uma vez me inscrevi, por exemplo, para um intercâmbio no instituto de América Latina e o pedido foi negado não pela minha falta de genialidade (ironia, tá?), mas porque não havia tutores relacionados a minha dissertação. Moral da história é que os melhores colleges oferecem (em tese) os melhores tutores. De resto é rivalidade como as irmandades/fraternidades americanas, com um quê mas refinado. Ciências clássicas também são prioridade.
O difícil da cidade é que nos sentimos sempre meio insignificantes. Cena clássica: você está lá no PUB, no Eagle, tomando sua pint de boa. Com certeza alguém vai te lembrar que ali no mesmo lugar, Crick e Watson, também enchiam a lata como meros mortais. A única diferença é que ganharam o Nobel pela descoberta do DNA. Sem mais. E eu nem lembro da fórmula de um mol. Mas para não achar que tudo em Cambridge é ciência e seriedade, ou pra rir da sua própria desgraça, uma boa ideia é conhecer o ADC teatro. É a casa da trupe de comédia da universidade, com apresentações diárias às 19h45 e às 23h. A apresentação mais pro fim da noite costuma ser mais experimental, engraçadíssima com textos bem ácidos e inteligentes.
Por fim, para uma pegada mais contemplativa sobre a vida, o conhecimento, a casa da mãe Joana, a falta de financiamento em pesquisa, a boa é encarar uma trilha iniciada nos jardins detrás dos colleges até o vilarejo de Grantchester. No outono é mesmo bonito, com o colorido das folhas e os barquinhos típicos (Punt) cortando os canais. Em menos de uma hora – se você não estiver contemplativo demais – chegamos à casa de chá The Orchad. Um ótimo refúgio para tardes chuvosas, regadas a scones e earl grey, outrora visitado por Virginia Woolf. Na minha próxima visita, tentarei ir a lugares livres dos fantasmas sabichões, se é que existem por aqui.
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