Tenho um prazer enorme em bisbilhotar à casa alheia pelas janelas entreabertas. Acho ainda mais interessante se ninguém estiver presente. Assim, posso criar a figura de um personagem, um morador fictício, baseada nos objetos que compõem o cômodo bisbilhotado. A indiscrição é tanta que até já ganhei um livro de fotos de janelas parisienses, exibindo a vida privada da cidade. Por essa mesma lógica, gosto também de visitar museus que outrora foram residências de escritores, artistas ou intelectuais. Já vasculhei os antigos lares de Goethe, Schiller, Nietzsche, Otto Dix, Thomas Mann, Shakespeare, Van Gogh, Picasso... Recentemente, inseri na lista a última morada de Freud, na Maresfield Gardens, número 20, no charmoso bairro de Hampstead, em Londres.
Confesso que estava bem cética, afinal o pai da psicanálise passou somente o último ano de vida nesse endereço. Mas acabei por descobrir que conseguiu trazer do seu apartamento em Viena, onde morou por 40 anos, a maioria de seus pertences. Apesar de ter vendido 800 dos seus livros antes da partida, por exemplo, manejou transportar outros 1600 títulos. Seu escritório foi praticamente recriado em Londres com os mesmos carpetes, livros, quadros, a coleção de antiguidades e o emblemático divã. Sim, o mesmo que ganhou de um paciente em 1891 e abrigou pelo menos 500 pessoas em tratamento. Fiquei ali parada, imaginando quantas neuroses alheias não testemunhou aquele sofá psicanalítico recoberto por lenços orientais.
Gravemente doente com um câncer de boca, Freud deixou a Viena sob o nazismo para morrer em liberdade. “Eu vi a sociedade científica que fundei dissolvida, nossas instituições destruídas, nossa imprensa assumida pelos invasores, os livros que publiquei confiscados ou reduzidos à folhetins, e meus filhos privados de suas profissões”. Embora ele tenha debandado do mundo meses depois, a filha caçula, também psicanalista, viveu na casa até a década de 80.
Novidade para mim foi ver a paixão do psicanalista pelas culturas distantes, em especial a egípcia, grega e romana. Há uma coleção imensa de antiguidades e até mesmo uma estatueta da Deusa Athenas na sua mesa de trabalho. Quem produz com uma Athenas a te olhar? Eu ficaria distraída. Mas, como declarou um próprio paciente, a sala de atendimento mais parecia um escritório de arqueologia e não um consultório médico. Fato. Mexeu comigo. Inconscientemente fui parar ali em uma fase que comecei a procurar insistentemente uma versão impressa em português do Livro de Ouro da Mitologia (Thomas Bulfinch). A curiosidade não é bem acadêmica como no caso de Freud, mas uma busca por significação.
Momento de digressão. De tempos em tempos, minha mãe diz que preciso acender velas, exercitar minha religiosidade, rezar. Beleza, concordo, mas rezar pra quem cara pálida? Esse “drama queen” crucificado que deu a vida porque quis e agora fica aí cobrando eternamente a humanidade que mergulha em culpa? Sem ele, terapeuta nenhum teria trabalho. Preciso procurar um outro Deus e acho que vou encontrar algum mais simpático entre os gregos, romanos ou até mesmo os celtas. Um Deus um pouco mais imperfeito como eu, mas que exija menos e não encha o saco. O bom de aderir ao politeísmo é poder trocar de Deus quando o atual começa a exigir demais.
Voltando ao Freud. A questão é que ele via mesmo muitas conexões entre a psicanálise e a arqueologia. Toda a cultura de sepultamento e mumificação egípcia seria análoga à preservação da memória no inconsciente. E o papel do psicanalista seria “cavoucar” algumas camadas e ajudar a trazermos de volta essas lembranças mortas ou reprimidas. Daí vem a obsessão dos psicanalistas com a bendita infância. Para deixar a coisa mais divertida, há vários trechos da interpretação dos sonhos espalhados pelos cômodos. Só para exclamarmos um “ah, vá, nem f.... !”. Não resisti, comprei o livro “The Interpretation of Dreams”, depois de lidar com a minha neurose e aceitar que não havia o original em alemão. Mais um sinal para eu parar de complicar a vida.
Além da exposição, o jardim é uma delicia para deixar as ideias assentarem, tomar um café ou ler alguma coisa. E para quem gosta mesmo de bisbilhotar a intimidade alheia, há vários psicólogos (até mesmo brasileiros) visitando o espaço. É peculiar ouvir o que conversam. Uma procurava uma versão da Penguin Books de uma das obras. Outro desistiu de comprar uma foto do psicanalista porque já tinha muitas no consultório...E a que tinha em mãos o mostrava meio carrancudo. Enfim, coisas que só Freud explica. Ainda em tempo: o tíquete (7 para estudantes) vale por um ano.
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