sexta-feira, 20 de março de 2020

Covid-19 e a epopeia para defender uma tese em meio ao pandemônio


Terminar o doutorado é um rito de passagem que marca sim (desculpa a chorumela) a vida acadêmica das pessoas. É um momento importante e eu tinha certeza que escreveria um post traduzindo meus agradecimentos para o português ou, sei lá, gritando para toda a Internet o quanto estava aliviada. Mas o pânico que eu sentia em imaginar a sabatina dos examinadores foi, ao longo dos últimos sete dias, transformando-se no desespero da dúvida se a prova aconteceria ou não. Aconteceu. Foi um gol de pênalti marcado no último milésimo de minuto do segundo tempo em final de copa do mundo. A última vez que segundos fizeram a diferença na minha vida, um avião da TAM despencou no meio da 23 de maio em São Paulo e meu carro conseguiu parar antes do fogaréu.

Quinze dias antes da prova. 

Ainda em Londres, no dia do meu aniversário, recebi um telefonema de um primo em Milão já trancafiado em seu apartamento há uns dias quando a Itália começava a colapsar. O Covid-19 já dominava o noticiário da BBC, mas a imagem do apocalipse ainda era algo distante. Só alguns e-mails informativos sobre medidas básicas de segurança. Um álcool em gel na bolsa. A única recomendação restritiva era para quem havia voltado diretamente da Itália. 

Uma semana antes da prova. 
Estava em Derby-UK para dar um workshop de jornalismo de viagem. No dia seguinte, todas as viagens de professores e pesquisadores foram canceladas. Ainda assim, as coisas pareciam sob controle. Brinquei com dois amigos: “daqui a uma semana, vocês poderão me chamar de Frau Dr. Cazzamatta” e estarei tão bêbada que serei capaz de correr sem roupa pela Alemanha. 

Três dias antes da prova. 
O cerco começara a fechar. Não sabia mais se meu voo partiria no domingo de Londres para Berlim. O surto se alastrava na Alemanha. Tentei achar outra opção para sábado, mas custava 250 libras a mais (sem as malas). Mantive os planos iniciais. Uma semana depois da defesa, seguiria ao Brasil. Fiz uma mala inteira de biquínis, protetor solar e saídas de banho. Inocente eu. Podem rir. Na hora do embarque em Londres (com um passaporte italiano), precisei dizer que não pisava na Itália há mais de um ano. Pousei em Berlim como previsto. A ideia era aproveitar a tarde de domingo, me acalmar para a prova. Cinemas, teatros e museus já estavam fechados. A estação principal e os transportes bem vazios. Restaurantes e cafés ainda estavam abertos. Foi até possível comer, mas algumas mesas estavam interditadas para manter a distância entre as pessoas. Na manhã seguinte, tudo fechou definitivamente.
Berlim, por volta das 18h. E-mail do meu chefe perguntando por onde eu estava e a seguinte observação. “Estou tentando salvar sua prova, mas não tenho controle sobre as fronteiras. Você já está na Alemanha”? Gelei. Não entendi bem até ler as últimas notícias. A Alemanha fecharia as fronteiras com seus vizinhos no dia seguinte. E eu acabado de chegar em Berlin. Sufoco. Já sabendo da minha presença em terras germânicas, meu orientador me aconselhou dar um jeito de chegar em Erfurt. Também fiquei sabendo que o segundo professor, com mais de 70 anos e, portanto, no grupo de risco, compareceria à defesa só por Skype. A reitoria achou melhor procurar um substituto. Peguei o trem naquela noite meio paranoica, passando gel nas mãos compulsivamente. Na contracorrente do apocalipse, o funcionário da Deutsche Bahn estava num bom humor que NUNCA presenciei em nove anos de Alemanha. Quando o trem encostou em Erfurt, ele não só anunciou, como também escreveu nos letreiros do comboio: “Uauuuu, conseguimos, que sede de cerveja”!. Compartilhei com ele esse sentimento de prazer por ter alcançado meu destino. 

Dois dias antes da prova
Evitei o máximo que pude usar transporte público. Caminhei até a universidade para almoçar no refeitório. Até aquele momento, tudo normal. Mas, no mesmo dia, a universidade decidira fechar a biblioteca. Deram até às 16h para emprestar, devolver, baixar artigos e xerocar o que fosse preciso. Detalhe, aqui na Alemanha estamos em recesso de aulas, período em que a biblioteca lota com alunos estudando para provas e escrevendo artigos finais. Já não estava mais em pânico pela minha apresentação ser ruim, mas por ela não acontecer. Eventos com mais de vinte participantes na universidade foram cancelados. 


Um dia antes da prova
Passei o dia em casa de pijama preocupada, ensaiando a apresentação e me preparando para possíveis perguntas. Um aluno que co-oriento de mestrado escreve dizendo que não tem como manter a data de entrega da tese porque a biblioteca já era. Em seguida, a reitoria autorizou a substituição do segundo examinador. Euzinha agora em pânico ao quadrado. Amigos mandando WhatsApp perguntando se a defesa ainda não tinha ido pro beleleu. 


No dia da prova. 
A pessoa passa a manhã de pijama (pijama-banho-pijama), repassa pela milésima vez a apresentação e segue para a universidade. Nada sobre a secretária da reitoria oferecer a chave da sala. Três pessoas próximas assistiriam a defesa com certeza. Na hora do almoço, comi do lado de fora no gramado (seguro morreu de velho, mas o solzinho estava mesmo bom), encontrei mais duas amigas que resolveram ir. O tédio era tanto que até defesa de doutorado da comunicação virou um programão! Rá. Deu a hora. Os quatro membros da banca chegaram. Olharam os convidados e dispensaram todos. Na sala, só quem é imprescindível. “Tempos complicados, desculpe”.  Janelas abertas, cada pessoa com uma distância de pelo menos dois metros uma da outra. Por duas horas, esqueci o maldito corona vírus. Falamos de sistema de mídia latino-americano, do papel da mídia na ascensão do populismo de direita. Matei uma garrafa de um litro de água. Foi rápido. Pra mim pelo menos. A galera lá fora estava tão entediada quanto família esperando trabalho de parto. 
Saí da sala, a banca se reunia. Lá fora, todo mundo já estava em ritmo de comemoração. Mal conseguia responder como tinha sido, o que tinham perguntado. Fui chamada. Todos em pé, o presidente da banca (agora já seguindo as formalidades em alemão) anunciou minha nota: summa cum laude (termo em latim pra maior nota). Não pude ganhar nenhum mísero aperto de mão. Só bateram palmas e deixaram a sala o mais rápido possível. Não teve fotos durante a apresentação. Só antes e depois. A comemoração teve que ser em casa. Compramos algumas coronas, não tinha como evitar! Ganhei vários jornais (Der Spiegel, FAZ, SZ e taz, os mesmos analisados na minha tese) com a data fatídica. Todos com corona na capa! A Der Spiegel dedicou a edição inteira à epidemia. Algo que ocorrera somente em três ocasiões anteriores – a queda do muro de Berlim, 11 de setembro e a morte de Rudolf Augstein. 
Dois dias depois da prova
Nosso voo para o Brasil foi oficialmente cancelado. Recebi outro e-mail do meu orientador me parabenizando mais uma vez e dizendo que duas horas após a prova chegou o comunicado oficial que todos os prédios da universidade seriam interditados. O refeitório também fechou. Busquei hoje o certificado da defesa, antes da secretária sair e apagar a luz até o dia 05 de maio. Agora será uma epopeia para conseguir voltar para Londres e ficar de molho até segunda ordem. Hoje, todos os cafés e restaurantes em Erfurt fecharam as portas. E posso dizer que virei doutora em uma fase que não há sequer papel higiênico pra limpar a bunda. Peculiaridades da vida. 

Um comentário:

Patricia disse...

Que leitura gostosa sobre sua experiência. Parabéns pela sua tese e principalmente a maneira que vc escreve. Que blog MARAVILHOSO! Não pare de escrever!!! Beijo