Há exatamente cinco anos, nesta mesma data, eu voltava para casa pela Avenida Washington Luiz. Tinha acabado de mudar de emprego, saíra do antigo “Diário de São Paulo” para trabalhar numa agência de comunicação paulistana. Era uma terça-feira, dia esquisito aliás, 17.07.2007. Sempre gostei de datas assim porque nasci em 03.03.1983 com três quilos e 300 gramas e diz a lenda que minha mãe ficou no terceiro andar no quarto 333. Quando tirei meu RG aos doze anos fiquei contente porque ele acabava na numeração 777-7.
Até o acontecido pelo menos. Como sempre o trânsito estava me tirando do sério. Desliguei o rádio porque estava cansada, sobrecarregada com o excesso de informação visual, buzinas de motoqueiros e com leve dor de cabeça. A música deixara de ser distração e virara tormento. Estava tão perto de casa, mas naquela velocidade até mesmo uma tartaruga chegaria no aconchego do lar antes que eu. Deitei a cabeça no volante. Um avião decolara (pelo menos era o que os meus olhos avermelhados de cansaço viam e me fariam jurar o fato pela memória de todos os meus antepassados). Pensei inocentemente “nossa, que delícia sair de férias assim no meio da semana e fugir dessa cidade caótica, esquizofrênica”. O trânsito seguiu. Acelerei. O avião estava muito baixo, mesmo para minha percepção que não é lá muito aguçada. Estava exausta, mas comecei a temer a altura da aeronave, somente um pouco acima dos carros na avenida. Foi questão de segundos. Coloquei o pé no freio com toda a força que pude.
Fiquei ali por poucos segundos (na minha cabeça pareciam horas). Não vi a aeronave bater no prédio da frente, só uma explosão imensa em direção à cauda do avião. Segurava a direção firme, com o pé no freio e olhos estatelados como se fosse a visão do apocalipse. Abri a porta do carro, quase derrubei um motoqueiro e sai correndo na pista entre os carros na contramão. Corri como todo mundo até faltar o ar. Percebi que tinha largado tudo no carro, chave, carteira, telefone. Tinha medo de voltar, o fogo consumia a aeronave e de tempos em tempo notava-se mais explosões e chamas de fogo. Voltei, estava muito quente lá perto. Peguei o telefone e me distanciei de novo. Tentei ligar para casa.
A ligação não completava. Tentei inúmeras vezes sem sucesso. Então toca meu celular: “Regina, você está tentando me ligar?”, perguntou minha mãe com uma voz tranquila e explicou: “estou desligando na cara de um sujeito, provavelmente do PCC que está ligando aqui desesperado e com respiração ofegante”, disse. “Nesse tipo de trote eu não caio”. Eu juro que não é brincadeira! O que a correlação de fatos de uma cidade de louco não faz! Efeito borboleta paulistano! Ainda não sei como classificar tudo isso: patético, trágico ou esquizofrénico? Continuei parada, impotente no meio da rua vendo tudo queimar lá na frente. Liguei para o namorado que estava de carro em direção a minha casa. Ele tinha felizmente seguido por outro caminho, pela Pedro Bueno, e perguntava incrédulo sem entender uma palavra “o que está pegando fogo?”. Em seguida, emprestei o telefone para uma mulher morena, de cabelos enrolados e estatura baixa que também precisava falar com a família.
Sentia-me mal. A senhora me devolveu o telefone e perguntou “você ouviu as pessoas gritando”? Pergunta de mau gosto! Claro que não ouvi! Aliás, só tenho memória visual, auditiva zero! Não sei como não escutei a explosão. O silêncio para mim era cortante. Muitos olhavam com as mãos no rosto, outros tiravam fotos pelos celulares como se tudo aquilo fosse algum tipo de espetáculo. A Susan Sontag até que tinha lá sua parcela de razão. Será que a constante exibição de fotos de guerra e tragédia nos torna apáticos e blasés? Como agimos “diante da dor dos outros”? É o Voyeurismo do horror?
Meu telefone toca de novo: “é verdade, está passando na TV"”. Como assim? Quer dizer que se não estivesse na televisão, tudo aquilo seria de mentira? O mundo me parecia cada vez mais de ponta cabeça. Fiquei ali por pelo menos duas horas, até a CET conseguir organizar a situação e evacuar a pista pela contramão. As luzes dos carros de bombeiro piscavam sem parar. Esperei todos os veículos saírem. Continuava com medo de buscar meu carro. O guarda da CET dizia, “vamos, vai lá”. Cheguei perto do meu velho golzinho, olhei a faixa de interditado preta e amarela a cem metros de distância do meu corpo, entrei e bati a porta com força. Achei que não fosse conseguir mais dirigir, estava com as pernas trêmulas. Queria ir embora dali. Dei ré, sensação estranha dirigir na contramão da Washington Luiz. Consegui finalmente chegar em casa. O telefone tocava de meia em meia hora.
Fui trabalhar no outro dia. Não segui o conselho da minha mãe de pegar o atalho da Pedro Bueno. Quis enfrentar o medo e segui pelo lado oposto da Washington Luiz. Evitei o olhar, virava a cabeça para a pista do aeroporto, mas o cheiro de ferrugem queimada entrava no carro, mesmo com as janelas fechadas. Estava quase no jardins, a poucas quadras da agência quando passei na preferencial sem olhar. O eixo do carro se quebrou, eu sai inteira, mas de novo, sem saber bem o que tinha acontecido. Nunca toquei muito no assunto, não li os noticiários, nem quis ler a capa da Veja. As pessoas comentavam no trabalho: “vocês viram que triste o casal que voltava da lua de mel?” A máquina digital havia ficado intacta com os bons momentos... Pelas mesmas pessoas descobri que a aeronave não tinha pousado e seja lá por quais motivos (acho que até hoje isso não foi 100% esclarecido) não conseguira brecar. O avião que decolava rumo a algum lugar bonito, para bem longe daquela incansável cidade era coisa da minha cabeça. Os olhos enganam!
Muita coisa se passou desde então. Li esses dias no jornal que o espaço da tragédia será transformado em uma praça. Fiquei contente, faltam praças na cidade. Aliás, falta uma cidade inteira. Mudei para Alemanha e minha mãe não mora mais naquela casa. Mesmo assim, quando tiver oportunidade de ver o local, acredito que o acharei um pouco menos peculiar agora.
Obs.: bem de mau gosto esses álbuns de fotos publicados hoje "o acidente da TAM em imagens"! Não?
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