segunda-feira, 1 de julho de 2019

Alemanha Central: vilarejos da Turíngia

Adorei uma crônica da Martha Medeiros em que ela cria um personagem fictício meio do contra, tão do contra que chega a ser charmoso e quase o convida pra jantar. Assim a autora descreve esse perfil de pessoas: “Por um lado, reconheço sua autenticidade como virtude e os admiro pela perseverança em sempre buscar aquilo que quase ninguém viu, quase ninguém leu, quase ninguém escutou falar a respeito. Eles sustentam os mercados independentes e de quebra atraem para si o charme dos aventureiros e desbravadores. São homens e mulheres únicos. Não foram produzidos em série”. Pois bem, tenho a esperança de que pelo menos essa almas raras se interessem pelas cidades alternativas desse post. E podem me chamar de embaixadora da Turíngia se quiserem. Não me importo. Sim, existe uma região central chamada Turíngia, considerada o coração verde do país e que faz todo mundo me olhar com cara de interrogação. 

A Alemanha do nosso imaginário fica sempre restrita a salsichão, uma Maß (a canecaça de um litro de cerveja) e o Neuschwainstein (o castelo perto de Munique que inspirou o da Disney). Acabou por aí! E nada me faz revirar tanto os olhos. Mesmo as cidades mais conhecidas do Estado– Weimar, Jena, Erfurt e Eisenach (onde Lutero traduziu a bíblia para o alemão escondido em um burgo) são pontos inexistentes no mapa para muita gente. E agora lá vem eu aqui tentando apresentar cidades alternativas a estas “batidonas”. Vou morrer idealista. E sem cliques. Dreamer, eu sei. Mas como não tenho que vender revistas, aumentar o tráfico do blog, vou continuar escrevendo o que me der na veneta. Chatão esse utilitarismo de sempre fazer algo por dinheiro ou para melhorar o currículo. Bastam minhas motivações pessoais. 

Depois de provar o experimentalismo londrino, estava preocupada como sobreviveria três meses sozinha em um Estado que quiçá aparece na previsão do tempo da Alemanha. Assim, decidi sair conhecendo vilarejos pitorescos por aí, daqueles que quase ninguém visita. Afinal, por que não dar uma chance ao cara tímido, escondido atrás do bar, que não está lá muito preocupado mesmo em ocupar os holofotes? Só uma observação antes de começar! Não estou dizendo que alguém deveria sair do Brasil só para conhecer o lado mais obscuro da Turíngia, ok? Mas expandir um pouquinho o roteiro (e a vida) não faz mal pra ninguém.

Gotha 

A primeira impressão é que desembarcamos onde o judas perdeu as botas (e as meias também). Mesmo. Estação meio afastada, com aquele quê de pós-DDR. Mas logo somos surpreendidos pelo maior castelo dos anos iniciais do barroco em território alemão, o Schloss Friedenstein. A história da construção começou durante a Guerra dos Trinta Anos, em 1643, quando o duque protestante da Saxônia-Gotha iniciou o projeto sobre as ruinas do burgo Grimmenstein. Dá para perder umas boas horas por aqui. Hoje em dia, o complexo abriga o Museu do Castelo, o Museu de Historia Natural e o Museu de História. Os móveis são originais do século 17 ao 19 e nos dá uma ideia da importância que tivera outrora a corte de Gotha, frequentada por figurões tipo Goethe, Voltaire, Frederico, – o Grande e Napoleão. Há quem odeie visitas à castelos, mas não tem muito como fugir. O combo castelo, igreja e prefeitura está em todo vilarejo. Não custa, nem que seja uma vez na vida. Um dos destaques da visita é o Teatro Ekhof, o único no mundo em funcionamento ainda com a estrutura de palco do século 17. Parece um teatro de casa de boneca, pequenino, todo em madeira que range ao suportar nossos passos. No festival homônimo, durante o verão, há operas, concertos e literatura, mas é bem difícil conseguir ingressos, por incrível que pareça. Saindo do castelo sentido à prefeitura (dá para subir na torre da Rathaus para apreciar uma vista bacana da cidade), há uma sequencia de fontes chamada Wasserkunst (arte com água).  É bonitinho, bucólico, ideal para tomar sorvete de mãos dadas ou tirar fotos com quê de propaganda de lavanda.

Gera

Pra quem tem alguma atração pelo expressionismo/dadaismo alemão, Gera é praticamente uma parada obrigatória. Cidade natal do Otto-Dix (1891-1969), a casa onde o pintor nasceu e morou (na Morhrenplatz), até se matricular no curso de arte em Dresden, é um dos principais pontos de visita. Lá estão algum dos seus trabalhos iniciais e uma porção de fotos de família e informações biográficas. Dix morou em Düsseldorf, Berlim virou membro da academia de arte prussiana em 1930 e foi um dos primeiros a perder sua cadeira de professor, com a ascensão do nazismo em 1933. Exilou-se então no sul da Alemanha, em uma residência no Bodensee. A casa é legal para bisbilhotar a vida do artista, mas suas obras mais icônicas estão expostas com a coleção de artes da Orangerie, uma edificação barroca ali perto. Lá estão as pinturas marcadas pelo pessimismo do entre guerras. São minhas favoritas. O retrato daqueles que flertaram de perto com a morte e viveram como se soubessem da chegada da Segunda Guerra Mundial. Imagens coloridas de noites decadentes, sexo, música, destruição, jogatina, cigarros, álcool, nudez, caveiras, algumas cenas bíblicas...Para se recuperar dessa avalanche Dix, o rio Gera tem margens agradáveis para um passeio mais sereno.

Arnstadt 

Hum, Arnstadt só tem ruínas do que foi outrora um castelo. Meus motivos para passar um sábado inteiro na cidade foram muito mais pessoais do que turísticos. O alemão mais alemão que  conheci nesses últimos dez anos (hoje já falecido) nasceu e cresceu nessa pequena cidade. Mesmo que indiretamente, ele foi um dos que contribuiu para nossa longa jornada em terras germânicas. O turismo fica restrito ao centrinho histórico, a prefeitura de tijolinhos vermelhos e as duas principais igrejas – Bachkirche e Liebfrauenkirche. Para os fãs de música clássica, Johann Sebastian Bach (daí o nome!) trabalhou como organista na catedral de 1703-07. Quem conhece a Thomaskirche de Leipzig dirá que não há comparação. Deixo a polêmica em aberto. Por outro lado, a Liebfrauenkirche é tão absurdamente medieval que parece estarmos num cenário de Game of Thrones. De resto, é só sentar e observar o cotidiano pacato turinguês.

Altenburg

Se eu começar a falar do centrinho histórico (Altenburger Markt), com sua igrejinha de mosaicos multicoloridos e prefeitura, o leitor não verá muita diferença em relação aos outros vilarejos. Já vejo até um alemão me censurando e dizendo – “isso é uma cidade”. Tudo questão de perspectiva. Mas o que vale muito em Altenburg é o grande lago (Der Große Teich), com uma ilha-zoológico. Nem que seja para ficar ali nos cafés das margens lendo e vendo o vaivém dos moradores nas tardes quentes de verão. Para os aficionados por castelos, há o Altenburger Schloss. Recomendo subir na torre central para ter uma visão de toda muralha que abriga a construção (foto). O que me distrai bastante nas exposições de palácio, castelos e  derivados é procurar pinturas exibidas aleatórias pelos cômodos que retratam partes da cidade que acabei de conhecer. Mas claro que você sempre pode ler e aprender tudo sobre a nobreza de Altenburg e suas esbórnias.

Meiningen

Um dos maiores chavões dos livros de turismo é dizer que Meiningen não é uma cidade com um teatro, mas sim um teatro com uma cidade. O bordão até que tem lá seus motivos. A companhia do condado de Saxen-Meiningen fez história nas artes cênicas. Estudiosos atribuem a trupe – uma vez liderada pelo Duque George II – a invenção de diversos procedimentos dramáticos; outros o veem como um dos primeiros diretores aos moldes contemporâneos. Fato é que o Teatro de Meiningen tem considerável importância no desenvolvimento das artes dramáticas e se tornou lenda no século 19. De 1874 a 1890, o grupo se apresentou em 39 Estados europeus, de Londres a Kiew, em um total de 2.591 espetáculos. Consegui assistir o encerramento da encenação do Die Räuber (Os Bandoleiros, de Friedrich Schiller), mas há óperas e balés no programa anual, para quem não quiser encarar 3 horas de dramas psicológicos em alemão. Uma vez que o teatro fazia parte da corte de Meiningen, não é nenhuma surpresa se deparar com um castelo – o Schloss Elisabethenburg – na cidade. Aliás, até dia 06 de outubro, o espaço abriga uma exposição bem bacana sobre charges publicadas durante o processo de reunificação do país. Vale lembrar que 2019 comemora não só os 100 anos da Bauhaus (a famosa e badalada escola de arte e arquitetura) mas também 30 anos da Queda do Muro de Berlim. Os dois jardins – o Englisher e o Schloss Garten ¬– e seus diversos riachos garantem passeios bucólicos por esse interior alemão.

Suhl


De trem, Suhl está um pouco antes de Meiningen. Sinceramente, quero muito ir até esse fim de mundo turinguês, mas não deu tempo! Não há muita coisa interessante por lá, além de um museu de armas e de carros, mas a urbe ainda está na minha lista, desde 2012. Após assistir o filme “Sushi em Suhl”, sobre a história de alemão que abre um restaurante japonês durante os tempos da DDR e tem que dar uma boa rebolada para mantê-lo em funcionamento. Assistir a película em Weimar (também antiga Alemanha Oriental) e foi bem interessante ver a reação das pessoas no cinema com cenas que arrancaram bastante risada da plateia. Quero ir até a cidade só para ser aquela brasileira doida procurando um estabelecimento japonês que nem existe mais ou procurando pessoas que se lembrem da existência da bodega!

Quem ainda não desistiu dos vilarejos escondidos e pequenos, há ainda um post antigo sobre Schmalkalden! Ainda na Turíngia! 

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