domingo, 15 de julho de 2018

O que você faria se...

... se recebesse o diário de um desconhecido? Em uma manhã de junho, provavelmente ensolarada, a senhora Fátima recebeu em Londres um pacote enviado da Espanha. Não era para ela, mas para algum dos seus vizinhos. O problema é que quase três semanas depois, ninguém nunca apareceu para buscar o envio. A Fátima está até hoje com aquela geringonça trambolhenta no meio da sua sala. Só pode. Seu nome, o bairro que mora e essa coisa solícita de ajudar o próximo recebendo caixas para os moradores me fazem crer que ela tenha um background islâmico. Difícil só dizer se ela usa burca, somente um véu ou anda com a cabeleira solta. Fato é que sei muito pouco sobre essa mulher. Nem eu, nem o Royal Mail temos a mínima ideia de quem é a Sr. Fátima ou exatamente onde ela mora. Who the f... is Fatima?


A suposta vizinha e dona do embrulho é essa pessoa que vos fala! Sim, tentei resgatar o tal pacote das maneiras mais inusitadas possíveis. Deixei bilhetes para a Fátima nos dois elevadores e na porta de entrada do prédio. Toda vez que cruzava com uma vizinha perguntava: – por acaso você é a Fátima? Também perguntei a alguns homens se eles eram casados com alguma Fátima. Devo ter virado a tresloucada do apt.30. Agora todo mundo me pergunta se encontrei meu despacho. Um garrancho à caneta em cima do meu bilhete sugeria de modo brincalhão (e até preconceituoso) que eu o traduzisse do inglês para bengali! Há uma grande comunidade de Bangladesch por aqui.  

Cansei de brincar de Sherlock Homes ou de “stalker” do 30 e resolvi entrar na briga com a Parcel Force, o braço da Royal Mail que cuida de remessas internacionais. Por que essas bizarrices acontecem o tempo todo comigo? Rezei para Nossa Senhora de Fátima resolver o imbróglio, troquei e-mail, telefonemas com o atendimento ao cliente. Entrevistaram o motorista, me mandaram bater no vizinho de outro prédio, entrevistaram o motorista de novo... E? E nada, né? Nessa terra é tudo para inglês ver. 
Ao notarem minha obstinação na busca do pacote, me perguntavam sobre o conteúdo. Quando respondia alguns livros, tinha a sensação de que os funcionários do correio gostariam de me mandar pro inferno. Talvez se eu dissesse que havia um vibrador caríssimo e ultra moderno, eles me levassem a sério e colocassem até a Interpol atrás do envio. Poxa, não era qualquer literatura. Sempre que viajo levo um caderno de anotações e um ou dois livros. Também compro mais alguns durante o passeio. Um escritor local nos diz muito mais sobre seu próprio país que um souvenir qualquer. Mas a história é sempre a mesma. Excesso de bagagem, dor nas costas, trambolho. Passei por Portugal e Espanha e antes de retornar a Portugal (sim, o roteiro foi meio bizarro), enviei o pacote de dez quilos para Londres. Então, desapareceu, sumiu, escafedeu-se um monte de material de divulgação das cidades que visitei, livros de arte, gastronomia, astrofotografia e metade da minha coleção da “Insustentável Leveza do Ser”. Uma versão novinha em português (de Portugal) e a que havia levado comigo em inglês (com o carimbo da Shakespeare & Company). E pior, meu moleskine de capa preta. 
Não era bem um diário, mas um caderno de anotações dos últimos dois anos. Um local onde eu costumava resolver meus próprios problemas, anotar coisas que me chamassem atenção, trechos de livros, músicas ou qualquer besteira que me irritasse a razão. Tudo era –  sim, claro, lógico, óbvio– pessoal e privado. E agora isso está por aí rodando o mundo, Londres ou os cômodos da casa da Fátima. Toda essa preliminar só para dizer que se eu recebesse um diário em uma língua desconhecida, COM CERTEZA, acharia alguém pra traduzi-lo para mim. Até pagaria a garrafa de vinho ao tradutor que me ajudasse! Para minha defesa, não faria isso com cadernos de conhecidos que encontrasse por acaso. Não mesmo, juro! Mas sem conhecer a pessoa, todos dariam uma bisbilhotada, não adiante negar! É como fazer xixi durante o banho. O que me deixa, no fim das contas, com a pulga atrás da orelha é a possibilidade da Fátima achar as mulheres ocidentais um bando de malucas! E de eu não poder mais me reconhecer ou me estranhar naquelas páginas. Que Fátima pelo menos possa dar boas risadas. 

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