sexta-feira, 18 de maio de 2012

Vida de cão



Gosto daquelas orelhas peludas compridas e douradas dos cocker spaniels, mesmo que às vezes esse estilo os deixe com cara de bobalhões. Mas sempre há uma certa graça em vê-los sair do almoço com os cachos lambuzados de alguma guloseima ou pingando água. Toda vez que encontro um, olho para o focinho engraçado e, ao simples sinal do balançar do rabicó arrebitado, logo pergunto: “é você”?  Explico.

Ganhei meu primeiro cocker dourado quando era bem criança. Não me lembro muito do processo de persuasão para trazer o cão pra casa, somente do olhar desolado e de compaixão do não escolhido. Colocaram dois filhotes na minha frente para que eu me decidisse por um deles. Estava nas minhas mãos o destino daquelas criaturas infantis e bobalhonas. Uma delas foi devolvida impiedosamente para a gaiola forrada com jornais. Mas eu logo me esqueci do infortúnio do pobre e da vida de cão que poderia levar. Trouxe o Scooby no colo cheio de afagos e já tinha até uma cesta enorme de vime esperando por ele na cozinha. O que eu soube muito mais tarde é que a minha escolha não fora muito feliz. Trouxe para casa o bichinho adoentado, tristonho, sem muita vontade de brincar. Com o passar dos dias, seus pelos dourados das patas foram caindo, deixando a pele esbranquiçada à mostra. Embrulhava as patas dele com pedaços de pano como uma pequena muleta para que ele esquecesse o problema. Mas a cada dia ele ficava mais careca. Perdia a luta contra a cinomose, embora eu nem soubesse bem o que era isso. Não havia outra possibilidade para o pobre. Levaram-no ao veterinário e me disseram que eles ficaria por um mês na UTI.

Um mês! Mas quanto tempo! Um absurdo. Ele nem estava tão debilitado assim. Fato é que demorou uns vinte dias para eu descobrir o paradeiro do Scooby. Ele fora sacrificado e agora os cômodos em que ele morou precisavam ser limpos e arejados para que o vírus desaparecesse. Minha avó me revelou o segredo às escondidas depois de ouvir por longas noites meus planos mirabolantes para resgatar o cachorrinho do veterinário. Chorei olhando as fotos dele todo remendado sem acreditar, mas não contei para mais ninguém que eu descobrira a verdade. Queria ver até onde iria a narrativa adulta. Foi minha primeira perda. Tudo bem, eu já tinha visto um filhote de jabuti morrer, mas como eles não interagem muito, alterei o marco das minhas lembranças.

Eis que depois de trinta dias, entra pela porta da sala um cocker dourado serelepe, curioso, cheirando tudo e todos que via pela frente. Ele ainda tinha aquele jeitão engraçado, que só as pessoas mais inocentes tem, mas era portador de um focinho muito maior. Acho que, por isso, ele também se sentiu melhor com a família! Brigamos várias vezes porque ele insistia em comer os pés das minhas bonecas e tomar água do vaso sanitário. Sempre lá vinha ele, chacoalhando aquele orelhona de elefante, pingando em minha direção. Com o tempo, ele foi se tornando independente. Fazia suas necessidades sozinho, pedia para que lhe abrissem a porta e saía pelo bairro sem coleira. Quando retornava, arranhava a porta e uivava até que alguma alma caridosa destrancasse o portão. Tornou-se popular nas redondezas, a vizinhança o chamava pelo nome, Jack, e muitas vezes vinham ao nosso lar reclamar do mal comportamento daquele cão metido a independente. Quantas vezes não se intrometia no meio da pelada, roubava a bola de futebol, corria mais que uma lebre e quando era capturado, a redonda já estava em frangalhos. Como se não bastasse, ainda resolveu brigar com os outros cães. Voltava muitas vezes com as orelhas rasgadas e sangrando. Após os cuidados, alguns resmungos para deixar passar mertiolate, ia descansar na sua poltrona e ai de quem estivesse lá. Se ele fosse com a sua cara, pularia no seu colo, senão o enxotaria de lá com as patas sujismundas do último duelo. Fiel, dormia sobre as roupas daqueles que viajavam para matar a saudade, mas preservava sua esfera privada. O que passara na rua, era assunto dele.

Um dia ele saiu como sempre fazia e nunca mais voltou. Esperamos um dia, dois dias e nada. Vasculhamos todas as ruelas da região, perguntamos para todos os conhecidos, mas até hoje ninguém sabe do seu paradeiro. Teria arrumado uma namorada? Fora seqüestrado, envenenado por algum vizinho impaciente ou caíra na tocaia da gang vira-lata? Ou teria somente se perdido ao querer sempre ir um pouco mais longe? Deve estar por aí rodando pelo mundo até hoje, embora muito velhinho, quase um ancião. Em 2005 achei um cocker spaniel chamado Jack em um cemitério de animais no entorno de Enniskerry, em Dublin. Se ele tinha pelos dourados acho que ninguém mais pode dizer. Perguntei: “É você”? Não obtive resposta. Mas acho improvável que ele tenha se camuflado no porão de um navio junto às batatas. Por isso, até hoje continuo indagando para aqueles que correspondem meu olhar “é você?”. Nem sei se nos reconheceríamos mais... 

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