Segunda - feira é dia de Geschichtsgesprächskreis, na Volkshochschule (Escola do Povo). Uma tradução bem livre, seria uma rodada de diálogos históricos, ou algo semelhante. Na verdade, é uma reunião de senhores (a maioria nascido por volta da década de 30), com muita discussão, dependendo do humor do grupo, acompanhada de chá e bolachinhas. A gente que sempre aprende história com um certo distanciamento, chega a ficar surpreso com os relatos desses “meninos” do começo do século.
Semana retrasada o tema era o bloqueio à Berlim em 1948 e o número insano de vôos que traziam suprimentos para a cidade (Luftbrücke). Depois que o setor soviético impediu a passagem dos governos ocidentais por seus territórios ocupados, Berlim ficou como uma ilha, isolada e cercada pelas cidades e estados tomados pelos russos. A sanção durou um ano. Nesse período, foram mais de 213 mil vôos, com 1,7 milhão de toneladas de alimentos e carvão. Era o único jeito da porção ocidental de Berlim não esfarelar pela falta de produtos de primeira necessidade. À época, o aeroporto Tegel foi construído às pressas em apenas três meses e aviões pousavam até sobre o rio Havel.
Até aqui nenhuma novidade. O que eu gosto mesmo são das observações dos integrantes do grupo. A moradora do bairro de Neukohl Erika Fehling, uma senhora na faixa dos 70 anos, comenta enquanto abocanha pedaços de maçãs: “eu era criança e ficava apavorada com o barulho dos aviões”, diz com uma cara de interrogação. “Acho que eu tinha medo e não conseguia dormir”, explica. Se ela tivesse nascido e morado por 25 anos como eu ao lado do Aeroporto de Congonhas, isso não seria um problema! Mas tudo bem. Sem comparações. Pior é tanto medo para nada. Segundo Erika, ela nunca recebeu nenhum pacote de alimentos. “Para conseguir as cestas, era preciso ter pelo menos duas crianças e morávamos somente eu e minha mãe”. O alivio é que pelo menos na merenda da escola tinha queijo, chocolate e até café.
Foi nessa parte da história que a senhora mais velha do grupo (ela passou dos 90), já de cabelos bem branquinhos, óculos redondos de armação rosa e sempre de pullover colorido, levantou a mão. “Sem a ajuda desses vôos e dos americanos nós não teríamos sobrevivido" diz. “ Foi uma situação de ajuda humanitária, não tínhamos comida, energia, quiçá (ta, ela não falou quiçá, mas sim sogar) aquecimento”.
A Erika não só concordou como arrematou: “eu sei que as coisas não são bem assim, mas por muito tempo fiquei marcada com a idéia de que os americanos eram os bons”. Na situação dela, com a mesma infância, acho que também teria essa impressão, um pouco maniqueísta. Afinal, ninguém nasce sabendo e fazendo análises de conjuntura política.
Depois disso o debate desandou. Olha o porquê começaram a discutir. O senhor Bernd Wirths, berlinense de sotaque bem difícil de entender e que adora falar, contar e narrar, comentou: “e mesmo com tudo isso muitas pessoas morreram de fome”. A esposa dele, que também participa das reuniões, é um pouco mais quietinha e só dá risada das polêmicas.
Foi então que Horst Sauer, aposentado de uma empresa de telefonia em Berlim Ocidental, rebateu: “não, de fome ninguém morreu”, diz ele convicto. “As pessoas podem ter morrido por conta de alimentação inadequada”. Ao meu ver, isso dá na mesma! A questão estava em torno do verbo “verhungern". O negócio acalentou tanto que a moderadora, nossa professora Ursula Bach tocou o sininho (ela passou a usá-lo em momentos mais exaltados) e gritou: 10 minutos de pausa!
Antes de nos levantarmos para o café, o senhor Müller Froelich esticou a mão e perguntou: “por falar em má alimentação, vocês se lembram do Lebertran?”. A expressão no rosto dos velhinhos foi terrível. Sabe quando colocamos um prato de chicória na frente de uma criança? Eu, que geralmente fico quieta e só observo o circo pegar fogo, não agüentei e tive de perguntar que raios era aquilo. Pacientemente ele tentou explicar. “É um tipo de vitamina, bem ruim, que tomávamos durante a guerra”, diz a primeira vez. “O sabor é assustador, é feito com fígado e é bem saudável para os ossos”, diz na segunda tentativa. Como nessas horas o melhor amigo do homem é um dicionário, lá fui eu. É óleo de fígado de bacalhau (ou algo bem próximo disso)! Não deu para segurar. Soltei um eca e todos os alemães (muitas vezes carrancudos) foram rindo tomar café.
3 comentários:
Oi Re!
Fui eu que comentei no post anterior! Esqueci de mudar o e-mail para meu nome rs.
Tenho acompanhado seu blog e adoro essas suas histórias das aulas!
Saudades!
Beijo da nani!
Oi Nani! Ach so! Agora caiu a ficha! Valeu. Tudo bem por aí? Já coloca na agenda aí e paella em julho!
Regina, o máximo esse post!
E saudade do seu 'eca'...
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