Sentada em um banco na Unter den Linden, quase em frente à embaixada russa, terminei de ler hoje “Anonyma – Eine Frau em Berlin” (Anônima – Uma mulher em Berlim). Enquanto aguardava o horário para retirada de vistos no consulado, uma espera de mais ou menos 30 minutos sob um solzinho fraco de fim de inverno, fiquei pensando nas insanidades da guerra.
Difícil mesmo de imaginar. Por isso o livro me pareceu interessante. São relatos do diário de uma jornalista, à época com trinta anos, que descreve o dia a dia das mulheres alemãs no final de 1945. Escondidas em porões e tentando sobreviver à fúria dos soldados russos que chegaram à capital, elas conviveram com estupros, fome, saques e suicídios. Historiadores falam em pelo menos 110 mil mulheres e garotas estupradas, em um total de 1,4 milhão, somente entre o começo do verão e o outono daquele ano. Muitas engravidaram, abortaram ou enfrentaram o estigma de carregar o filho do inimigo, quando não foram abandonadas ou vistas como “impuras” pelos próprios homens alemães.
Durante uma aula na Volkshochschule (“escola superior do povo”) de Wilmersdorf, o assunto veio coincidentemente à tona. A professora citou o livro e alguns trechos. Era uma indicação bibliográfica para quem quisesse exercitar a leitura na língua. Um aluno polonês levantou a mão e disse: “você está colocando os alemães como vitimas da guerra e esquecendo de tudo aquilo que eles foram responsáveis”.
Nesse momento percebi o quanto as pessoas ainda estão envolvidas com o passado (claro, não é para menos) e que apesar dos 65 anos, o assunto ainda é difícil de ser abordado, ainda mais em uma sala com europeus de diferentes nacionalidades. Um outro alemão na faixa dos 27 anos me disse que o nacional socialismo é desgastantemente discutidos nas escolas, mas que ele nunca conseguiu falar sobre os traumas da guerra com seu avô, por exemplo.
Confesso que gostei do livro e como mulher fiquei tocada pelos relatos, sim. Mas uma coisa não tem nada a ver com a outra. Isso não significa absolvição pelo maior massacre do século. Depois da colocação do polonês, me senti um pouco culpada por ter me sensibilizado tanto com o texto.
Os relatos são frios, uma narrativa quase objetiva, seca. É difícil entender a frieza das descrições, quase nada emotivas ou com toque de ódio e vingança. É como se a narradora mesmo pasma com tudo, ainda quisesse e fizesse de tudo para continuar vivendo. Se bem que uma passagem pequena, quase besta perto das histórias contadas pela autora, me chamou atenção. Ela voltou do trabalho (limpeza de pedras e destroços), depois de caminhar quilômetros e não tinha nada em casa para comer. A solução foi fazer um chá preto e colocar o que restava de açúcar. O jeito que ela descreve o prazer de tomar aquilo, me deu vontade de beber também (pior, com açúcar! e eu sempre digo que isso é a mesma coisa que estragar o sabor do chá).
Por razões obvias, a questão das mulheres violentadas foi tabu na DDR. Na Alemanha Ocidental, o tema também foi negligenciado para que se pudesse manter a imagem dos vencedores da guerra. Somente em 2008 saiu pela primeira vez um filme na Alemanha com esta abordagem. Baseado no livro, a película foi dirigida por Max Färberböck, com a atriz Nina Hoss no papel principal. Aliás, o diário foi publicado no Brasil pela editora Record. Se alguém se interessar, segue indicações bibliográficas:
- Befreier und Befreiete: Krieg, Vergewaltigung, Kinder. Helke Sander e Barbara Johr, Fischer, Frankfurt, 2005.
- Berlin: The Downfall1945. Anthony Beevor, Penguin Books, 2007
- Ravishing the Women of Conquered Europe. Austin J APP, Unknown Binding, 1946.
- Freiwild: Das Schicksal deutscher Frauen 1945. Ingeborg Jacobs, Ullstein Taschenbuchvlg, 2009.
- Anonyma - Eine Frau in Berlin: Tagebuch von 20. April bis 22. Juni 1945. Taschenbuch, 2005.
4 comentários:
Nao tinha me ligado antes. Voce terminou de ler o livro em frente a embaixada russa, minutos antes de entrar em territorio russo e estava fazendo reflexoes de como os russos lidaram com as mulheres de berlin? E'.... de fato pekuliar!
Fora que a organizacao daquele consulado para conseguir um simples visto de turista e' por si so' um estupro a qualquer definicao de cidadania...hehehe
heehehe, credo! De fato organização não é com eles! Ainda bem que entrei lá 65 anos depois! rsrsr
Regina, tudo o que aconteceu deveria servir de exemplo ao ser humano que a paz é o único caminho a ser seguido. Pena que algumas nações não entendam isso.
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