quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Sobre “cruzar fronteiras” e a tristeza dos que não viajaram

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Há alguns anos, um colega de trabalho perdeu o pai. Quando o encontrei depois de sua licença, no auge dos meus dezenove anos, dei bom dia e fingi que nada aconteceu. Dentro da minha cabeça até ressoava uma voz – “diz alguma coisa”. Mas fiquei lá, estatelada, sem consegui falar nada. Nadinha, além de um “oi”. Parece insensível, mas pensa bem, que raios vou dizer? Quantos “meus pêsames” ele não deve ter escutado?

Tinha dezesseis anos quando minha avó faleceu. Foi minha primeira perda de me deixar sem chão. Moramos juntas até meus dez anos, ela me ensinava a ler enquanto meus pais trabalhavam, comíamos mingau e, por incrível que pareça, até na missa ela me carregava. E assim, de uma hora para outra, lá estava eu no servidor público, sentada, olhando perplexa ao lado do caixão. Ela tinha uma faixa branca cobrindo o nariz e a boca por causa do derrame. 

Estava lá, quieta com a minha dor, lambendo minhas feridas sem ser incomodada... Até começar a chegar um monte de velhotas (hoje percebo, super bem intencionadas). Muitas se sentavam ao meu lado e resolviam dizer “alguma coisa”:
Ela já tinha 80 anos, viveu, né?
Eu olhava e respondia mentalmente:
Sério? Você tem quantos anos? Já está preparando seu velório?
Descansou! Que Deus a tenha!
Meu pensamento torto:
Descansou foi meu cazzo. Quem quer relaxar vai a um spa ou tira férias. Por que você não morre pra tirar um cochilo?
Pelo menos ela não sofreu!
É? Quem disse? Você estava lá pra saber?
Mais uma boa alma chegou aos céus!
Se ela quisesse ser anjo iria fantasiada no planetário!
Queria mandar todo mundo pra fora do velório e ficar lá quieta com o meu furacão. Cada frase dessa soava como uma ofensa a minha tristeza, um slogan pronto para a hora do luto. Preferia que essas senhorinhas tivessem ficado quietas ou jogado a real: “que merda”, “mas que bosta”, “Deus é um carcamano salafrário”, “a vida puxa nosso tapete”, “puta que pariu, mas que notícia azeda”. Ou então poderiam ter me contado algo engraçado, interessante que soubessem da minha avó dos tempos da juventude, sei lá. Sabe assim, “oi, eu sou a Jandira e costumava roubar goiabas com sua avó lá em Tupi Paulista”. 

Acho que foi ali que abdiquei de dizer qualquer coisa nessas horas. Melhor ficar quieta. Essa semana, uma amiga que admiro muito perdeu uma pessoa da família. De novo, não sabia o que dizer e achei melhor assumir a falta de traquejo emocional. Viu como estou amadurecendo? Ela deu a notícia de um jeito tão bonito que quando eu embarcar num roteiro desses (espero que daqui a muitos e muitos anos) gostaria que falassem assim também – “cruzar fronteiras”. Pensei no velório como uma sala de embarque, antes da despedida. 

Só espero não ter problemas com a alfândega depois de tanta blasfêmia! 

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