Há muitos hábitos que carinhosamente nomeio de “coisas de alemão”. Uma delas são as férias de bicicleta. Não tem nada a ver com aquela coisa de amarrar a magrela atrás do carro e descer para praia no domingão. Por aqui eles escolhem um trecho do país que consideram bonito e saem pedalando — 200, 300 por que não 400 Km? — com a bagagem pendurada na garupa. Param à noite para dormir em alguma pensão e durante o almoço aproveitam o piquenique.
Umas das minhas super amigas fez umas férias dessas para comemorar o fim do mestrado. Ela se preparou por semanas, estudou o trajeto, onde tinha mais subida, descida, abrigos no caminho e foi até Füssen, uma vila perto de Munique. Claro que fiquei tirando onda e dizendo que ninguém em sã consciência faria um negócio desse. Muito mais fácil embarcar em um ICE e alugar um triciclo qualquer no destino final.
Nessa época, eu passava a semana em Bonn e vinha para Weimar nos finais de semana. Cruzava o vale do Reno de trem, sempre muito cedo, meio sonâmbula, mas quase sempre colocava uns palitinhos nos olhos só para não deixar passar batido uma das paisagens mais bonitas da Alemanha. As fotos saíam sempre ruins e tremidas, quando eu tinha energia para tirá-las. Foi então que quando essa fase terminou e eu voltei definitivamente para casa, em Weimar, resolvemos entender melhor porque os alemães acham esse tal de Farradtour tão legal. O percurso foi fácil de escolher. Vale do Reno, de Mainz a Konblenz, para verificar vagarosamente tudo que sempre vi meio dormindo da janela do trem.
Fora isso, nada mais a planejar, certo? Nós já tínhamos duas bicicletas, compradas usadas há três anos em um mercado de pulgas em Berlim. Nosso trem sairia rumo a Mainz às 7h da manhã. Ok, foi preciso fazer a reserva pessoalmente e pagar uma taxa de 12 euros por bicicleta. Bebemos com um amigo até umas cinco, tiramos uma soneca e fomos para a estação. Ao pedalar na plataforma para chegar logo no vagão das bicicletas, eis que já surge o primeiro empecilho da viagem: o pneu de uma delas estourou. Detalhe: o outro pneu fora trocado há poucos dias. A outra estava com o breque meio problemático, mas nada sério.
Com bicicleta capenga e quebrada não daria para prosseguir. Como ficamos sem reação, sem saber bem o que fazer, entramos no vagão e penduramos a lata velha lá ao lado das potentes mountainbikes cheias de terra. Para piorar era feriado, o vagão de bicicleta estava abarrotado. E a nossa lá perneta, com a borracha frouxa e flácida, quase uma fratura exposta. Feriado, lembra? Nada aberto, nenhuma loja ou oficina. Ou voltávamos para casa com as moribundas ou dormíamos em Mainz e compraríamos duas bicicletas novas antes de iniciar a jornada no dia seguinte.
Como seria impossível pedalar até Koblenz, voltar para Mainz, resgatar as duas velhas e adoentadas e subir no trem com quatro bicicletas, tivemos que abandoná-las assim sozinhas no meio da rua. Parece dramático, mas havia um vínculo. Elas não deviam custar mais que vintão, mas os laços eram afetivos. Cruzávamos Berlim todo fim de semana, de Charlottenburg a Prenzlauerberg com elas. Elas fizeram parte da mudança para Weimar, faziam parte da nossa vida. Abrimos as correntes e as colocamos nas cestinhas. Torcemos para que algum estudante as encontrasse e as levasse consigo para mais alguns passeios por uma cidade pequena, que não demande grandes esforços. República – universidade; Universidade – república. Então as deixamos lá. Quem sabe um dia não as reencontramos em Mainz? O fato é que agora a gente tinha que cruzar o vale inteiro pedalando, sem resmungar de dor nas pernas, afinal as abandonamos por isso. Faríamos em memória as nossas primeiras bicicletas alemãs. No próximo post!
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