Uma vez, um homem se perdeu em meio
as pedras do litoral da Jureia. Caminhava, olhava o mar, saltava de rocha em
rocha e não achava o caminho de volta para casa - seja lá qual fosse seu
conceito de casa. Fazer uma trilha sem água, comida, mapa ou uma mochila nas
costas deixa a narrativa um pouco inverossímil, mas isso é, exatamente, o que
torna o personagem, de certo modo, tão especial. Ele tinha um espírito
aventureiro, pelo menos quando era jovem. Ao envelhecer, talvez possamos chamar
a mesma atitude de desprendimento. Demorou alguns dias para que ele achasse a
trilha de volta. Olhava o céu desconfiado, nutria um ressentimento pelos
urubus, voando alto sobre sua cabeça pesada, como se os pássaros só estivessem
por ali, esperando ele padecer. Ao voltar para casa, cansado e castigado pela
natureza, contou seu método para prosseguir sem deixar o mar levá-lo: pensava
na imagem da filha.
Demorou pouco para que se
recuperasse e voltasse novamente as suas andanças em busca do mar. A cada passo
anotava seus pensamentos (alguns um tanto estapafúrdios), guardava os blocos no
bolso com zíper, mergulhava mesmo com os papéis no casaco e retornava à noite.
Essa rotina durou anos e foi interrompida abruptamente por uma chuva forte e um
caminhão. Nessa noite ele não voltou. Não houve vínculos, memórias ou
pensamentos capazes de manter o coração batendo e os rins funcionando. Há um
ano, ele deixava de existir. Talvez tivesse ido atrás dos urubus que o
atormentavam, quem sabe.
Daquela vida curta e peculiar só restavam
mesmo as lembranças. A filha tentava remontá-las como um quebra-cabeça.
Conversas com ele em momentos mais e menos sóbrios, histórias de amigos
próximos, ex-namoradas, os bloquinhos de anotações. Há coisas que os filhos
nunca sabem sobre os pais, seus verdadeiros medos, incertezas, arrependimentos.
Todos tiveram uma vida antes de seus rebentos nascerem, mas sabe-se lá por qual
razão não se fala muito dessa fase. Era cada vez mais difícil reconstruir essa
narrativa. As lembranças pareciam a sequência de um caleidoscópio, imagens
fragmentadas de vidrinhos multicoloridos, sempre dispersas, diferentes,
praticamente impossível de conseguir a mesma cena, mas, ainda assim, muito bonitas. O
que era ficção, interpretação dela ou realidade? Isso importa?
Despediram-se 4 meses antes.
Beijaram-se no rosto. Ela segurou seus ombros, o chacoalhou. Deram as mãos, ele
foi se virando para ir embora, soltando os dedos levemente. Essa imagem era nítida, ela segurando somente a ponta do dedo indicador. Partiu, atravessou a
rua. A filha falou em voz alta: “se cuida”. O pai não olhou para traz, mas ela
sabe que ele sorriu. Ele a ensinou a deixar as coisas partirem. Mostrava isso a
ela todos os dias pelo modo que vivia. Claro que a filha não quis aprender. Não
é assim tão fácil let it go. Nunca
mais se viram.
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