Desde semana passada, quando o prêmio Nobel de literatura alemã publicou seu poema “was gesagt werden muss” (o que deve ser dito) no caderno de cultura do jornal “Süddeutsche Zeitung“, a poeira não baixa e o autor não deixa mais as páginas do jornal do mundo inteiro. Pensei até em traduzir o poema, mas acabei encontrando duas boas versões em português, no site da Revista Cult e de um grupo pró-Palestina. Tem momentos em que a situação é tão complicada que é melhor ficar quieto e só observar. A questão Israel-Palestina é uma delas. Eu sempre tive a impressão que é muito difícil criticar a política de Israel aqui na Alemanha sem ser chamado de anti-semita. Acontece o tempo todo com os grupos de esquerda (die Link), por exemplo. Pra mim, que cresci e estudei no Brasil, a crítica não faz o menor sentido. Como grupos de esquerda podem ser anti-semitas? O mesmo tem acontecido com Günter Grass. Não sei se posso chamá-lo de um “ícone da esquerda alemã”, mas meu primeiro contato com o autor foi por conta dos seus textos sobre a reunificação do país. Acusado pela revista “Der Spiegel” e seu ex-chefe de redação Rudolf Augstein de ser contra o processo político da época, Grass defendia uma reunificação menos acelerada para que os grupos de oposição na Alemanha Oriental tivessem tempo de se consolidar. Assim como Habermas, ele não achava democrático a RDA ser anexada à Alemanha Ocidental. Em seu livro- diário de 1990, Grass relata todo o processo com um olhar digno em relação à história dos cidadãos da Alemanha oriental. Mas essa é uma outra discussão.
Assim como boa parte da Alemanha, fiquei ultra decepcionada quando descobri que Grass fez parte da SS, a organização da polícia nazista. A confissão demorou. Veio na sua auto-biografia de 2006, no livro “nas peles da cebola” (Beim Häuten der Zwiebel), publicado no Brasil pela Record. Ele coloca o dedo na própria ferida. Conta o fim de sua infância no início da guerra e relatas momentos da vida em que a personalidade de uma pessoa é formada. Muitos julgam a narrativa como uma estratégia de propaganda e sua confissão é sempre usada para reafirmar o argumento de que o autor seria um anti-semita.
Entre o imbróglio de textos contra e a favor de Grass, achei a entrevista do jornalista Cornelius Pollmer (Süddeutsche Zeitung Online, 10 de abril) com o publicista franco –alemão Alfred Grosser. Filho de pais judeus, o entrevistado se coloca no debate ao lado de Grass. Trata-se de um diálogo sobre o andar da discussão na Alemanha e na França, sobre as críticas à Israel e o auto-ódio judeu. Grosser tem 87 anos, nasceu em Frankfurt/Main e emigrou para a França. Hoje vive em Paris e no seu livro publicado em 2009 “De Auschwitz a Jerusalém” (Rowohlt), o autor dedica-se à pergunta o quão afiado deve-se criticar o governo de Israel. A entrevista foi traduzida abaixo. O link com a entrevista original está no fim. Vale a pena.
Grass disse algo sensato
SZ: Sr. Grosser, o senhor tem sequer vontade de declarar algo sobre o texto de Günter Grass?
Alfred Grosser: Sim. Com prazer. Eu estou do lado de Grass e essa discussão tem sido, de fato, muito silenciada. Com exceção do jornal Haaretz que se perguntou: “nosso governo ficou maluco”?
SZ: Por que você se coloca ao lado de Grass?
Grosser: Por que ele disse algo sensato em seu poema. Naturalmente não se trata bem de um poema, mas o conteúdo em si é muito mais importante que a forma: provocou o governo israelense. No entanto, o que acontecerá se o Iran realmente for atacado e tiver de fato os tais mísseis com os quais ele poderia contra atacar Tel Aviv? A guerra seria certa.
SZ: Críticas concretas à política de Israel não é nenhum tabu, não na Alemanha.
Grosser: Mas elas significam imediatamente anti-semitismo. Eu posso entender tal agitação, mas não em relação à toda crítica. A pior reação foi do escritor judeu Marcel Reich-Ranicki, que declarou no jornal “Frankfurter Allgemeine” de domingo, que Grass ataca o estado judeu. Israel não é, como diz o pensador sionista Theodor Herzl e também David Ben-Gurion, um estado judeu, mas sim um estado aberto a todos os judeus. Além disso, eu não vejo como e onde Grass se coloca contra os judeus. Ele critica o governo de Israel. Ele já o havia feito anteriormente. Reich-Ranicki diz que Grass seria um eterno anti-semita, mas isso é uma tremenda besteira.
SZ: O que te incomoda nesta crítica?
Grosser: Eu me pergunto porque o ataque tem de ser “na linha da cintura”. Reich-Ranicki coloca Grass como um propagandista em alguns aspectos, embora tal crítica também esteja no jornal Haaretz. No entanto, o governo israelense é quem está, nesse aspecto, muito mais para um estrategista de propaganda, que para tirar o foco da sua política de colonização, precisa do perigo iraniano.
SZ: E o governo alemão?
Grosser: contra ao que Helmut Schmidt também criticava: “certo ou errado, meu país”! Se a formula ainda for válida, como disse Joachim Gauck em 2010 em uma entrevista, citando o escritor David Grossmann: “Meu país, certo ou errado. Se certo, será mantido assim; e se errado, para ser colocado no caminho certo. E novamente: Não se trata dos judeus, mas sim do governo do estado de Israel. Com muita freqüência escuto na Alemanha: o Senhor pode dizer isso ou aquilo! Senhor Grosser, a gente não pode dizer tais coisas.
SZ: E o que o senhor responde?
Grosser: Eu pergunto quem os impede. Onde está a crítica, por exemplo, da última entrega do submarino alemão a Israel? Houve um pouco de crítica por parte de Grass, mas nada além disso. Até mesmo quando eu estou em um ginásio no país, me perguntam como a Alemanha deve lidar com Israel. Eu digo que eles não carregam essa culpa e não é preciso ter a obrigação de pensar em Hitler e no Terceiro Reich para defender a dignidade humana em toda parte. Isso também se aplica aos palestinos. E quando Israel defende esse valor (a dignidade humana), por favor, isso também se aplica aos palestinos.
SZ:Você critica Grass em alguma coisa?
Grosser: Talvez o fato dele ter se calado por tantos anos sobre sua participação na organização nazista SS. Mas é preciso uma explicação: Havia antigamente 900 mil jovens alemães que estavam na organização SS, mas não na SS em si (como parte do partido nazista).
SZ: Como Grass você vivenciou também uma agitação semelhante. O conselho judeu alemão tentou impedi-lo de participar do evento em memória à noite do “pogrom” porque você criticou claramente a política de Israel em relação à Palestina.
Grosser: Meus pais e quatro avós são judeus e minha crítica significaria então um auto-ódio judeu. Eu disse que em mim mesmo havia muito mais amor do que ódio para sentir. De qualquer modo eu fui muito menos atacado à época, com exceção de Henryk M. Broder, mas Broder ataca todo mundo ao seu redor. E no fim tudo deu certo porque eu formulei esse pensamento pacificamente. Eu nunca fui tão mal tratado como Grass.
SZ: No evento estava também o poeta Graumann, que se transformou em seguida presidente da central judaica na Alemanha.
Grosser: Graumann disse, que a reação do conselho central não seria mais tão dura. Mas agora elas se tornaram duras novamente. Eu acho uma pena. Eu desejaria que a central finamente mudasse seu nome para o conselho central dos judeus alemães, assim como Ignatz Bubis se via.
SZ: Como foi o impacto da discussão provocada por Grass na França?
Grosser: Existem poucos artigos a favor de Grass e que não conseguem entender a emoção gerada na Alemanha. A crítica ao governo de Israel (não aos judeus) é aqui na França rotina. Há críticos como eu, que são classificados lá (na Alemanha) talvez como anti-semitas. Nós não somos atacados, no entanto, porque somos cidadãos da República da França. Na Alemanha é outra coisa, porque lá significa, que como alemão não se deve atacar ou criticar Israel.
SZ: Grass disse em uma entrevista: na França é o “Alfred Grosser” que por essas razões está isolado. Você sente isso de outra forma?
Grosser: eu não acredito estar isolado, pelo menos não na França. E na Alemanha eu tenho a meio século uma falsa liberdade e por isso eu faço o que eu quero.
http://www.sueddeutsche.de/politik/2.220/alfred-grosser-ueber-kritik-an-israel-grass-hat-etwas-vernuenftiges-gesagt-1.1329287
http://revistacult.uol.com.br/home/2012/04/gunter-grass-publica-poema-acusando-israel-de-ameacar-a-paz-mundial/
http://grupoaccaopalestina.blogspot.de/2012/04/traducao-do-poema-de-gunther-grass-o.html
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