Hoje é uma data para ressuscitar esse blog sobre estranhices, esquisitices, contradições e peculiaridades da vida. Faz anos que não escrevo, nesse vai-e-vem entre países, conferências, pesquisa e artigos. Essa tarde, percebi que meus últimos posts foram escritos durante a quarentena, quando ainda fantasiava poder sair, viajar, colocar uma mochila nas costas. Um terapeuta perguntaria, “você realmente quer o que deseja”? Nunca saberemos. Minha versão de 2021 queria voar e explorar o mundo. Em 2024, gostaria de conseguir passar pelo menos dez dias numa mesma cidade. Esse ano me levou para o Japão, EUA, Austrália, Nova Zelandia, Portugal, Eslovênia, terminará na Irlanda e, por fim, no Brasil. As idas entre Alemanha e Dinamarca eu já desconsidero. Vida é movimento, ciclos. Tenho medo de parar. Medo ou quem sabe culpa. Hoje, nessa mesma data, 10 de novembro, perdi um primo em um acidente de carro, aos 22 anos. Depois dele, ainda vieram muitas outras perdas, menos traumáticas, mas nem por isso menos doloridas. Assim, sinto-me em dívida com os que se foram. Preciso viver por eles, por mim, ver, conhecer e experimentar o que eles já não podem mais. Como desperdiçar a vida que me foi poupada? Jamais.
Eu tinha uma aposta com esse meu primo. A gente fazia piada. Quem fosse ‘premiado’ (na verdade, dizíamos “quem se lascasse primeiro”) teria que pagar uma paella com sangria para o outro. Esse “se dar mal” era a visão de dois adolescentes ou jovens adultos sobre virar pai ou mãe. Riamos e tínhamos convicção de que ganharíamos um do outro. Infelizmente venci a aposta. Ganhei por “W.O” porque ele “walked away” desse mundo miserável. Os primos mais novos assumiram a aposta na tentativa de dar continuidade as besteiras que trazem leveza a vida.
Acredito que essa perda tenha mudado muito a família. Trouxe a percepção de que a vida é efêmera, curta, inesperada. Meu primo viajou para uma pescaria tranquila, pacata e sem retorno. Qualquer sonho, ideia, projeto que tínhamos – mesmo que se vistos como não muito normativos – nunca foram boicotados. Ninguém nos empurrou qualquer cartilha chata como terminar faculdade, casar, trabalhar em banco com carteira assinada, pagar aposentadoria ou frequentar igreja aos domingos. Todos nós saímos do país por anos, sem pais, mães ou avós fazerem drama ou chantagem emocional. Muito pelo contrário. Anos se passaram. Cada um superou esse baque a sua maneira. Vida segue, vida é movimento.
Fui pescar na Noruega pela primeira vez e descobri como pode ser legal. Fiz as pazes com a atividade que até então me parecia traiçoeira. Ressignifiquei. E eis que nesse ciclo de movimentos inusitados de 2024, mais de vinte anos depois da minha primeira vitória por W.O, o irmão caçula do meu primo foi premiado e descobriu que seria pai. Não vou contar aqui a epopeia do querido casal até eles decidirem anunciar a gravidez para não expor a intimidade alheia. O processo rendeu boas risadas. E bons vinhos também. Fato é, o pequeno deveria se chamar MacGyver. Como nascerá na Irlanda, acho que os pais acharam queima filme. A razão da minha paella na faixa, com sangria, vinho e sobremesa, vai se chamar Gregório. Carinhosamente já apelidado de Greg. A aposta foi paga em Algarve, Portugal, última vez que vi o casal curtindo a vida antes de embalarem nos cantos gregorianos da madrugada. A data prevista para a chegada desse mais novo integrante seria 09 de novembro.
Fiquei empolgadíssima. Teria um sobrinho que nasceria na data da queda do muro de Berlim. Fim da Guerra Fria. Fim da Cortina de Ferro. Sempre penso como teria morado tantos anos da minha vida na Alemanha oriental, feito mestrado, doutorado, pós-doutorado se não fosse o 09 de novembro. Liberdade. Fiquei com isso em mente. 09 de novembro de 2024. Voei de Copenhagen para Berlim. Foi uma semana puxada pra mim profissionalmente. Muitas incertezas. Uma semana conturbada também em termos geopolíticos. Aquele clima de liberdade há 35 anos estava bem diferente. Trump ganhou as eleições nos Estados Unidos. A coalizão do governo alemão se desfez quando o chanceler social democrata Scholz (SPD) despediu Lindner, o ministro liberal das finanças (FDP). Comprei o Berliner Zeitung que reportava sobre as comemorações do muro e a revista der Spiegel para ler sobre a crise no Bundesregierung. A guerra na Ucrânia continua e a disputa Hamas e Israel ainda assombra o Oriente Médio. Que mundo para se chegar.
09 de novembro. Gregório já estava sendo espremido mundo afora. Mas ele não chegou dia 09. Após 40 horas de parto, Gred veio ao mundo no dia 10 de novembro, na mesma data em que seu tio deixou esse mundo. Pra mim é tão difícil escrever ‘tio’ porque hoje, quase aos 42 anos, quando vejo as fotos daquele meu primo mais velho pouco antes do acidente, enxergo uma criança. Greg também nos trouxe liberdade. Veio chutando à marretadas esse muro de tristezas que rondava a família. Já nasceu nos mostrando como sustentar as contradições dessa vida. Penso nos avós (meus tios) e no pai (meu primo) que perderam um filho e um irmão na mesmíssima data que ganharam filho e neto. Vida louca, mundo louco. Bem vindo Gregório! Que sua vida seja intensa, bonita e cheia de peculiares contradições. Viva como se não houvesse amanhã!