Tem coisas muito estranhas nessa vida. Sempre conto e reconto minha memória aos seis anos, na sala da minha avó, em 9 de novembro de 1989. Musiquinha do plantão da Globo e cheirinho de sopa de feijão no fogão. Vontade de comer ignorada por todos, que olhavam para a TV – em pé – atônitos. Ainda sou do tempo em que, quando a musiquinha do plantão da Globo tocava, todo mundo corria para a frente da telinha. Minha avó dizia: “Acabou o socialismo.” Eu, que não entendia nem de socialismo, nem de Guerra Fria, Alemanha, nazismos, política ou Apfelstrudel, não compreendia o “oh-do-borogodó” em torno da notícia. Só queria mesmo jantar. Mas lembro de imagens de jovens marretando um muro, dançando, chorando, se abraçando, olhando incrédulos para a câmera. Mal sabia eu que, se o maluco do Günter Schabowski, membro do politbüro, não tivesse feito aquele anúncio todo desajeitado, a vida de uma garota lá na rua Vapabuçu – em São Paulo – teria sido tão diferente.
Coincidências da vida: fui parar na Alemanha Oriental – Leipzig, Berlim, Weimar, Erfurt – fiz meu mestrado, doutorado, pós-doutorado, comecei a dar aulas, pesquisar desinformação. Escrevi sobre o discurso da unificação alemã pelo mundo. Uma trajetória pouco provável, se Gorbachev não tivesse abraçado a Perestroika! Depois de anos, entre tantos altos e baixos, tropeçando na vida e nas declinações, resolvi encarar o longo processo de naturalização. Afinal, nada mais tranquilo que navegar a burocracia alemã. As regras foram flexibilizadas: agora é possível se naturalizar sem perder outras cidadanias – no meu caso, a brasileira e a italiana. Afinal, queria me naturalizar, não negar minhas origens.
Deu um baita trabalhão. Não tenho espaço para contar tanta presepada burocrática e desencontros nas datas. Traduza certidões de nascimento, peça documento no cartório do Brasil, apostile, mande para a Alemanha, traduza, mande para os Behörde. Volta, tudo errado! Repete o processo. Socorro! Deu certo, finalmente! Recebo uma data para mostrar os documentos originais: compareça dia 17/07. Opa, sinal de sorte – aniversário do meu primo miniatura. Italianinho. Socorro: estava na Escócia. Toca comprar um voo de última hora, vendo um rim, pago a passagem. Bate-volta Escócia–Alemanha. Agora é só esperar o processo ser julgado! Joga na mão do Schabowski, do Goethe, do Schiller, do Nietzsche – niilista é bom, blasê. Caguei se não der certo. Medo: não vai ser aprovado. Precisa residir na Alemanha; estou prestes a entrar numa temporada de pesquisa na Itália – paga pela Alemanha – mas que alterará meu endereço oficial. Caos. Precisa sair rápido, é agora ou nunca. Calma, mas não tão rápido. Chega uma carta – sim, alemães amam carta: compareça aqui dia 8 de agosto. 08/08. Que data estranha. Meu primo disse uma vez que 8 é um número bom. Significa infinito. Minha família só tem maluco. Opa, mas tenho um voo para Singapura dia 7 à noite! Que caos. Muda esse voo, paga taxa. Final feliz.
Leio uma frase de palavras enormes, prometo respeitar a Constituição alemã, os direitos humanos, as instituições e o Parlamento. Pronto! Dez minutos depois, estou com o certificado de naturalização em mãos. Foi como preparar uma refeição nível três estrelas Michelin e comer tudo em 10 minutos. Agora posso votar, não preciso mais avisar a imigração quando mudo de cidade.
Vira e mexe me perguntam onde me identifico mais. Não sei, essas perguntas me confundem. Minha língua materna, meus mortos (por enquanto) e a música me levam ao Brasil. Os trejeitos, a comida e as maluquices familiares (Non sono italiano, sono austriaco, porco Dio), pra Itália. A pesquisa, a ciência, a profissão e a organização me remetem à Alemanha. Acho irônico eu pegar o passaporte alemão depois de tantos anos, meses antes de seguir para a Itália. Não tiro o Ernesto da cabeça, que saiu da Itália provavelmente faminto e hoje descansa no cemitério em Itu. Atravessou o oceano para mandar as futuras gerações para as universidades mais renomadas na Itália. O futuro é um troço doido. Vai saber se não arrumo um emprego em outro país e me naturalizo britânica, francesa ou belga. Não sou brasileira, italiana ou alemã. Acho que sou uma mistureba dos livros lidos, das pessoas conhecidas, dos lugares visitados e das perdas sofridas. Parte desse mundão por aí – e segue o baile. Férias lá vou eu!