Sempre disse que gosto de andar de
transporte público em cidades desconhecidas. Há quem torça o nariz para a
ideia, os incansáveis amantes dos táxis, mas continuo batendo na mesma tecla.
Não há melhor forma de ver as pessoas, testemunhar o dia a dia de uma metrópole
ou pacato vilarejo. Mas e quando viajamos para casa ou para a nossa própria
cidade? Tem muitas coisas que estranhamos quando vamos a São Paulo. O volume, a
quantidade de carros, pessoas, trânsito. Parece um parlamento de esquizofrênicos
falando alto, com um rádio ligado (que ninguém escuta), buzinas externas e um
vai e vem estonteante. Um fala que ninguém te escuta.
Foi assim, com esse pano de fundo,
que resolvi abrir mão do táxi e me apertar numa lotação rumo a Cocaia, em Guarulhos.
Nunca tinha ido lá e fiquei incomodada com isso. “E o toque de recolher do
PCC”? Mas se já ponderamos os ataques nos metrôs de Moscou, explosões de cafés
em Marrakesh e até mesmo possíveis atentados em Tel Aviv, por que deveria temer
as condições da minha cidade, onde nasci, vivi e falo a língua sem sotaque
nenhum? Pois era questão de honra. Lá fomos nós até o metrô Armênia e
procuramos a tal kombosa. Não foi difícil achar. Um garoto pendurado a porta do
mini ônibus (agora as lotações estão regularizadas!) gritava COCAAAAAAIIIIIIA!
“Moço, eu preciso descer em frente a
ACM, faz sentido?”, perguntei a um sujeito barrigudo. “Faz sim, sobe aí, disse
o homem que, em seguida, se sentou ao volante. No caminho de ida e de volta,
fui relembrando como as pessoas nesse Brasil são comunicativas. “Sim, dá
remédio de verme e coloca pra dormir”, dizia uma moça loira, no celular, ao meu
lado, de calça jeans e tênis de fazer ginástica. Um outro moço, mais caladão,
lia um livro em inglês. Quando cheguei ao meu destino, esperei uns bons 40
minutos numa sala de espera confortável, com revistas, televisão e máquina de
café. A Dona Ana Maria Braga continuava na telinha como sempre. Na TV, nada
tinha mudado. E lá vem uma moça morena, em uniforme claro, avental, cabelos presos
para trás, um sorriso no rosto e um pano nas mãos. Ela para de pé, em frente ao
objeto da união nacional, olha pra mim e diz: “eu adorava as receitas da Ana
Maria”. Não entendi o porquê do verbo no passado e perguntei se ela não gostava
mais. “Gosto, mas eu não trabalho mais na residência da Dra. X” (sei lá eu o
nome da tal patroa), respondeu ela. “Lá eu tinha tempo de anotar todas as
receitas”.
-
Mas
você tentava fazer depois?
-
Fazia
quase todas. São fáceis, sabe. Bem mais fáceis que a do Guedes. Ele faz tudo
muito complicado, temperos estranhos, vinhos na comida.
Quem é o tal Guedes eu não faço a
mínima ideia. Fiquei com vergonha de perguntar e como não tenho smart phone,
não deu para pedir ajuda ao Santo Google. Deixei o papo morrer. Mas a discussão
gastronômica continuou, agora com a morena da recepção, de cabelos lisíssimos,
calça Jens apertadinha e salto alto.
-
Acredita
que o marido da minha amiga falou que só vai comer na casa da mãe dele porque
ela cozinha mal? - contava ela para a recepcionista. - E eu disse que ela tinha de aprender a cozinhar.
“Poxa, ela deveria dar
graças a Deus, você não acha?” - disse eu me intrometendo na conversa alheia. Já estava lá mesmo, sentindo-me no meu país.
- Ah, eu cozinho para o meu marido, mas
todos os finais de semana vamos para a casa da mãe dele - contou sua estratégia
e continuou com a observação. - Mas agora eu sou visita lá, não lavo mais nada.
Acredita que eu fazia tudo para ela, lavava, guardava, organizava os tupperware
e ela ainda dizia que eu tirava tudo do lugar? - relatou com um ponto de
interrogação no rosto.
Ri sem graça. Lembrei dos alemães e
daquele papo sobre a esfera privada. Deixei pra lá. Nenhum germânico entenderia
mesmo como eu sei tanto da vida daquela moça, sua sogra e sua amiga em coisa de
15 minutos. Precisei sair. Encontrei a advogada, aquelas com cara de advogada,
sabe?, e fomos com o carro da empresa sentido ao cartório. O motorista, um
menino de terno, com traços infantis, cheio de sardas no rosto e cabelos meio
avermelhados, apontou um punk no caminho. “Olha essa calça rasgada”, comentou.
“Se eu aparecesse assim em casa, meu pai arrancaria minha orelha”. Dei risada de novo.
Dois mundos tão distantes numa só cidade. São Paulo e seus arredores têm lá
suas vantagens.
No cartório, aquela situação chata,
pacata, formal, onde ninguém fala nada sobre nada. Pensei. “Burocracia é
entediante e igual no mundo inteiro”. Engano meu. Depois de 15 minutos, a
escrivã contou todos os casos engraçados que viveu no último mês. “Pois é, a
mulher encheu minha mesa de fotos do marido pelado com a amante”, relatava
indignada e rindo. “E depois o homem veio assinar a partilha e eu não conseguia
parar de lembrar daquelas imagens”. E uma mulher que perdeu o marido, entrou na
justiça porque os filhos do primeiro casamento do falecido queriam vender a
casa, alegou que não tinha onde morar e ganhou a ação? “É a justiça, sabe”,
explicava a escrivã. “Agora os garotos só venderão depois que a segunda esposa
do pai morrer”. Só não achei a tal funcionária do cartório mais simpática
porque ela falava comigo como se eu não estivesse lá.
- Dra., agora ela deve assinar. -
falava se dirigindo a advogada.
Antes de ir embora, precisava
descobrir qual ônibus voltava para o metrô. Encostei no ponto com ar de
interrogação. “Esse aí não serve, moça”, me avisou uma mulher sentada com
sacolas de plástico no colo. “ Você vai para São Paulo, né?”, perguntou. “Tem
de entrar em um intermunicipal, esse aqui só anda em Guarulhos”. Enquanto o meu
busão não aparecia, minha conselheira me contou como ela se perde sempre que
vai “lá pra São Paulo”.
Entrei no veículo, acenei para a
senhora que ficou no ponto e passei uns 40 minutos no trânsito até descer na
estação Tietê. Durante o trajeto, fiquei impressionada com as habilidades de
uma moça loura, cheia de reflexos na cabeleira, calça fuseau preta e tênis, em
se maquiar naquele chacoalhar rumo à Marginal Tietê. Ela espalhava o blush com
o pincel de cerdas largas em todo o rosto, checava o resultado em um espelhinho
e tirava mais apetrechos de dentro da bolsa. Voltei inteira para a minha bolha
paulistana. Ouvi mais histórias do que se tivesse cruzado a Alemanha toda de
trem. Confortável, não posso dizer que foi, mas foi São Paulo, assim como ela
realmente é.
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