sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Entre a sopa de feijão e o passaporte alemão



Tem coisas muito estranhas nessa vida. Sempre conto e reconto minha memória aos seis anos, na sala da minha avó, em 9 de novembro de 1989. Musiquinha do plantão da Globo e cheirinho de sopa de feijão no fogão. Vontade de comer ignorada por todos, que olhavam para a TV – em pé – atônitos. Ainda sou do tempo em que, quando a musiquinha do plantão da Globo tocava, todo mundo corria para a frente da telinha. Minha avó dizia: “Acabou o socialismo.” Eu, que não entendia nem de socialismo, nem de Guerra Fria, Alemanha, nazismos, política ou Apfelstrudel, não compreendia o “oh-do-borogodó” em torno da notícia. Só queria mesmo jantar. Mas lembro de imagens de jovens marretando um muro, dançando, chorando, se abraçando, olhando incrédulos para a câmera. Mal sabia eu que, se o maluco do Günter Schabowski, membro do politbüro, não tivesse feito aquele anúncio todo desajeitado, a vida de uma garota lá na rua Vapabuçu – em São Paulo – teria sido tão diferente.

Coincidências da vida: fui parar na Alemanha Oriental – Leipzig, Berlim, Weimar, Erfurt – fiz meu mestrado, doutorado, pós-doutorado, comecei a dar aulas, pesquisar desinformação. Escrevi sobre o discurso da unificação alemã pelo mundo. Uma trajetória pouco provável, se Gorbachev não tivesse abraçado a Perestroika! Depois de anos, entre tantos altos e baixos, tropeçando na vida e nas declinações, resolvi encarar o longo processo de naturalização. Afinal, nada mais tranquilo que navegar a burocracia alemã. As regras foram flexibilizadas: agora é possível se naturalizar sem perder outras cidadanias – no meu caso, a brasileira e a italiana. Afinal, queria me naturalizar, não negar minhas origens.

Deu um baita trabalhão. Não tenho espaço para contar tanta presepada burocrática e desencontros nas datas. Traduza certidões de nascimento, peça documento no cartório do Brasil, apostile, mande para a Alemanha, traduza, mande para os Behörde. Volta, tudo errado! Repete o processo. Socorro! Deu certo, finalmente! Recebo uma data para mostrar os documentos originais: compareça dia 17/07. Opa, sinal de sorte – aniversário do meu primo miniatura. Italianinho. Socorro: estava na Escócia. Toca comprar um voo de última hora, vendo um rim, pago a passagem. Bate-volta Escócia–Alemanha. Agora é só esperar o processo ser julgado! Joga na mão do Schabowski, do Goethe, do Schiller, do Nietzsche – niilista é bom, blasê. Caguei se não der certo. Medo: não vai ser aprovado. Precisa residir na Alemanha; estou prestes a entrar numa temporada de pesquisa na Itália – paga pela Alemanha – mas que alterará meu endereço oficial. Caos. Precisa sair rápido, é agora ou nunca. Calma, mas não tão rápido. Chega uma carta – sim, alemães amam carta: compareça aqui dia 8 de agosto. 08/08. Que data estranha. Meu primo disse uma vez que 8 é um número bom. Significa infinito. Minha família só tem maluco. Opa, mas tenho um voo para Singapura dia 7 à noite! Que caos. Muda esse voo, paga taxa. Final feliz.

Leio uma frase de palavras enormes, prometo respeitar a Constituição alemã, os direitos humanos, as instituições e o Parlamento. Pronto! Dez minutos depois, estou com o certificado de naturalização em mãos. Foi como preparar uma refeição nível três estrelas Michelin e comer tudo em 10 minutos. Agora posso votar, não preciso mais avisar a imigração quando mudo de cidade.

Vira e mexe me perguntam onde me identifico mais. Não sei, essas perguntas me confundem. Minha língua materna, meus mortos (por enquanto) e a música me levam ao Brasil. Os trejeitos, a comida e as maluquices familiares (Non sono italiano, sono austriaco, porco Dio), pra Itália. A pesquisa, a ciência, a profissão e a organização me remetem à Alemanha. Acho irônico eu pegar o passaporte alemão depois de tantos anos, meses antes de seguir para a Itália. Não tiro o Ernesto da cabeça, que saiu da Itália provavelmente faminto e hoje descansa no cemitério em Itu. Atravessou o oceano para mandar as futuras gerações para as universidades mais renomadas na Itália. O futuro é um troço doido. Vai saber se não arrumo um emprego em outro país e me naturalizo britânica, francesa ou belga. Não sou brasileira, italiana ou alemã. Acho que sou uma mistureba dos livros lidos, das pessoas conhecidas, dos lugares visitados e das perdas sofridas. Parte desse mundão por aí – e segue o baile. Férias lá vou eu!


segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Chegadas e partidas

Hoje é uma data para ressuscitar esse blog sobre estranhices, esquisitices, contradições e peculiaridades da vida. Faz anos que não escrevo, nesse vai-e-vem entre países, conferências, pesquisa e artigos. Essa tarde, percebi que meus últimos posts foram escritos durante a quarentena, quando ainda fantasiava poder sair, viajar, colocar uma mochila nas costas. Um terapeuta perguntaria, “você realmente quer o que deseja”? Nunca saberemos. Minha versão de 2021 queria voar e explorar o mundo. Em 2024, gostaria de conseguir passar pelo menos dez dias numa mesma cidade. Esse ano me levou para o Japão, EUA, Austrália, Nova Zelandia, Portugal, Eslovênia, terminará na Irlanda e, por fim, no Brasil. As idas entre Alemanha e Dinamarca eu já desconsidero. Vida é movimento, ciclos. Tenho medo de parar. Medo ou quem sabe culpa. Hoje, nessa mesma data, 10 de novembro, perdi um primo em um acidente de carro, aos 22 anos. Depois dele, ainda vieram muitas outras perdas, menos traumáticas, mas nem por isso menos doloridas. Assim, sinto-me em dívida com os que se foram. Preciso viver por eles, por mim, ver, conhecer e experimentar o que eles já não podem mais. Como desperdiçar a vida que me foi poupada? Jamais. 

Eu tinha uma aposta com esse meu primo. A gente fazia piada. Quem fosse ‘premiado’ (na verdade, dizíamos “quem se lascasse primeiro”) teria que pagar uma paella com sangria para o outro. Esse “se dar mal” era a visão de dois adolescentes ou jovens adultos sobre virar pai ou mãe. Riamos e tínhamos convicção de que ganharíamos um do outro. Infelizmente venci a aposta. Ganhei por “W.O” porque ele “walked away” desse mundo miserável. Os primos mais novos assumiram a aposta na tentativa de dar continuidade as besteiras que trazem leveza a vida. 

Acredito que essa perda tenha mudado muito a família. Trouxe a percepção de que a vida é efêmera, curta, inesperada. Meu primo viajou para uma pescaria tranquila, pacata e sem retorno. Qualquer sonho, ideia, projeto que tínhamos – mesmo que se vistos como não muito normativos – nunca foram boicotados. Ninguém nos empurrou qualquer cartilha chata como terminar faculdade, casar, trabalhar em banco com carteira assinada, pagar aposentadoria ou frequentar igreja aos domingos. Todos nós saímos do país por anos, sem pais, mães ou avós fazerem drama ou chantagem emocional. Muito pelo contrário. Anos se passaram. Cada um superou esse baque a sua maneira. Vida segue, vida é movimento. 

Fui pescar na Noruega pela primeira vez e descobri como pode ser legal. Fiz as pazes com a atividade que até então me parecia traiçoeira. Ressignifiquei. E eis que nesse ciclo de movimentos inusitados de 2024, mais de vinte anos depois da minha primeira vitória por W.O, o irmão caçula do meu primo foi premiado e descobriu que seria pai. Não vou contar aqui a epopeia do querido casal até eles decidirem anunciar a gravidez para não expor a intimidade alheia. O processo rendeu boas risadas. E bons vinhos também. Fato é, o pequeno deveria se chamar MacGyver. Como nascerá na Irlanda, acho que os pais acharam queima filme. A razão da minha paella na faixa, com sangria, vinho e sobremesa, vai se chamar Gregório. Carinhosamente já apelidado de Greg. A aposta foi paga em Algarve, Portugal, última vez que vi o casal curtindo a vida antes de embalarem nos cantos gregorianos da madrugada. A data prevista para a chegada desse mais novo integrante seria 09 de novembro. 

Fiquei empolgadíssima. Teria um sobrinho que nasceria na data da queda do muro de Berlim. Fim da Guerra Fria. Fim da Cortina de Ferro. Sempre penso como teria morado tantos anos da minha vida na Alemanha oriental, feito mestrado, doutorado, pós-doutorado se não fosse o 09 de novembro. Liberdade. Fiquei com isso em mente. 09 de novembro de 2024. Voei de Copenhagen para Berlim. Foi uma semana puxada pra mim profissionalmente. Muitas incertezas. Uma semana conturbada também em termos geopolíticos. Aquele clima de liberdade há 35 anos estava bem diferente. Trump ganhou as eleições nos Estados Unidos. A coalizão do governo alemão se desfez quando o chanceler social democrata Scholz  (SPD) despediu Lindner, o ministro liberal das finanças (FDP). Comprei o Berliner Zeitung  que reportava sobre as comemorações do muro e a revista der Spiegel para ler sobre a crise no Bundesregierung. A guerra na Ucrânia continua e a disputa Hamas e Israel ainda assombra o Oriente Médio. Que mundo para se chegar. 

09 de novembro. Gregório já estava sendo espremido mundo afora. Mas ele não chegou dia 09. Após 40 horas de parto, Gred veio ao mundo no dia 10 de novembro, na mesma data em que seu tio deixou esse mundo. Pra mim é tão difícil escrever ‘tio’ porque hoje, quase aos 42 anos, quando vejo as fotos daquele meu primo mais velho pouco antes do acidente, enxergo uma criança. Greg também nos trouxe liberdade. Veio chutando à marretadas esse muro de tristezas que rondava a família. Já nasceu nos mostrando como sustentar as contradições dessa vida. Penso nos avós (meus tios) e no pai (meu primo) que perderam um filho e um irmão na mesmíssima data que ganharam filho e neto. Vida louca, mundo louco. Bem vindo Gregório! Que sua vida seja intensa, bonita e cheia de peculiares contradições. Viva como se não houvesse amanhã! 


domingo, 20 de junho de 2021

Lisboa: chegar e partir

Não sei se foram os doze meses em quarentena ou o espacate de treze anos entre Alemanha e Reino Unido que me deixaram assim. Com esse jeito meio bobo, meio gringa deslumbrada no Mediterrâneo. Passo protetor solar religiosamente todas as manhãs e faço o “pequeno almoço” na varanda. Sim, mesmo que esteja frio para os padrões lisboetas. Paro na rua e admiro árvores de mexericas e limões sicilianos. Pareço uma criança paulistana quando escuto um galo cantar numa capital. Juro que tem galo! Acho os telhadinhos vermelhos desiguais, cheios de antenas tortas destoando na paisagem, o charme maior do continente. Mais do que pão de queijo nas padarias, tapiocas nos supermercados e até mesmo catuaba para relembrar a adolescência, há lajes e varandas. Às vezes torço para chover só para sair gritando – “olha a roupa no varal”. Há anos não me lembrava que roupas podem secar livres ao sol e ao vento. 

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Londres, see you soon.

Foram exatos quatro anos. Quarenta e oito meses em que reclamei do preço do aluguel, da quantidade de turistas baldeando na estação Green Park, do sotaque indecifrável de East London (Cockney), do cheiro de fritura do Fish & Chips. Virei piada entre os amigos. Eles reviravam os olhos e repetiam – “sim, peixe é grelhadinho só com um fiozinho de bom azeite”. Concordavam para não contrariar! Tentaram me apresentar o Spaghetti Hoops! Italianos, por favor, pulem as próximas duas linhas. Foi uma das coisas mais bizarras que já vi no Reino Unido. Anéis de massa com molho vermelho, ultra processado e enlatado. Come-se sobre um toast para curar a ressaca. Felizmente, consegui me refugiar nas tortas (Pie & Mash) e dizer que há algo para se apreciar na culinária britânica. São boas mesmo.

quarta-feira, 3 de março de 2021

Fantasia e Realidade

Uma parte de mim gosta de envelhecer. Só uma parte mesmo. Acho uma tremenda besteira juvenil a maioria das coisas que escrevi anos atrás. Por isso estou aqui preocupada em divertir a Regina do futuro. A melhor parte desse blog é dar motivos pra rir deu mesma daqui alguns meses. Há oito anos (2014) comemorei meu aniversário no meu primeiro colóquio de doutorandos antes mesmo de receber o financiamento para pesquisa. Pisquei e acordei com quase quarenta anos! Quando desejo de volta aquela juventude, esqueço que teria de abrir mão de todo o caminho até aqui – livros, músicas, amigos, viagens, pesquisas, conferências, um milhão de crises existenciais, perdas, mudanças, dúvidas, conquistas. Seria mais jovem, mas bem menos completa e mais amedrontada. Pra apaziguar esse paradoxo o jeito é intensificar a vida antes de cair no divã aos quarenta. Viajar, fazer umas cagadas, mudar mais algumas vezes, cruzar a Transiberiana, fotografar, caminhar, ler mais uns livros, aprender italiano, escrever outras besteiras, virar mestre de yoga, meditação, sei lá. Quando e se o Covid deixar. 

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Antídoto 2020-2021! Será que teremos vacina contra burrice?


2020 foi esquisito em exponencial. Bizarro mesmo. Um ano de perdas colossais, dúvidas, incredulidade, um vendaval digno de um demônio da Tasmânia. Assisti “Death to 2020” (Netflix), ri demais com toda a retrospectiva da política à la pornochanchada anos 80, e olha que o filme se mantem majoritariamente no eixo US-UK. Imagina se trouxessem com mais afinco a destrambelhada agenda mortífera do miliquinho acéfalo brasileiro. Em alguns países, o número de vítimas já se iguala ao de soldados mortos da Segunda Guerra Mundial. Não surpreende que muitos já comemoravam o Natal em agosto! Chegou a vacina, uma leve esperança, mas também as mutações que mais uma vez suspenderam o mundo. “Plunct Plact Zum, não vai a lugar nenhum”! Um ode ao carimbador maluco do Raul. O cerco começou a se fechar, pessoas próximas adoecendo. A gente aqui equilibrando medo, saudades, arriscando um encontro aqui e acolá. Culpando-se por um abraço. Depois respirando fundo com um resultado negativo em mãos. A vida sempre foi um xadrez, um balanço estratégico de prós e contras, um cálculo de possíveis perdas. Mas o sazón 2020 já salgou demais na boca. Negacionistas, milícias digitais, caos e desinformação generalizados, o picadeiro macabro de 2020. A vacina contra desinformação também faria um bem danado!

domingo, 25 de outubro de 2020

Partiu pro Paraguay!

Cada um lida com suas perdas como pode. Os Cazzamattas, muitas vezes, enfrentam dores com piada. Quando as lágrimas caem, alguém tira alguma besteira fenomenal da cartola para transmutar o choro em gargalhada. Então, a pessoa que fez a graça também se emociona e as horas seguem nessa mistura de piadas, anedotas, angústias e preocupações. Típica situação dos nossos velórios, dos mais traumáticos pelo menos. Não é difícil traçar as origens desse lado tragicômico da família, bastava olhar pro “capo” (carinhosamente atribuído ao Sr. Júlio Cazzamatta). Ele merecia um velório de pelo  menos 72 horas de piadas. Netos e filhos recontando histórias e polêmicas das mais diversas perspectivas (Covid de merda). Não darei conta aqui, somente na compreensão de neta, de recontar toda sua figura complexa e caricata. Precisava ter ao meu lado todas as outras pessoas que conviveram com ele pra remontar esse quebra-cabeça. Natural de Salto de Itu... Ops, quem o conheceu que complete a frase: “Salto de Itú é o seu c...”. Spoiler: se você não gosta de palavrão, pare de ler o post nesse preâmbulo introdutório. É muito difícil reconstruir histórias de Júlio Cazzamatta com uma linguagem educada. Mas prometo que tentarei. Logicamente só narrarei aqui os causos mais ou menos publicáveis. Acabo de escutar sua voz: “Rê, vai cagar”. 

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Semântica é o seu c...

Essa semana, covid à parte, me aconteceu algo bem bizarro. Sequer posso dizer que foi surpreendente porque essas sutilezas são parte do cotidiano feminino. Sutilezas, aliás, que boçais de plantão teimam em classificar como mi-mi-mi. Respiro fundo. Não é ‘questão de semântica’ ou análise de discurso de conversa de elevador, mas uma sensibilidade para nuances da nossa cultura patriarcal. “Eu ajudo” é uma ova, só para citar uma clássica. Notem que estou tentando usar menos palavrões para expressar emoções negativas!