sexta-feira, 23 de abril de 2021

Londres, see you soon.

Foram exatos quatro anos. Quarenta e oito meses em que reclamei do preço do aluguel, da quantidade de turistas baldeando na estação Green Park, do sotaque indecifrável de East London (Cockney), do cheiro de fritura do Fish & Chips. Virei piada entre os amigos. Eles reviravam os olhos e repetiam – “sim, peixe é grelhadinho só com um fiozinho de bom azeite”. Concordavam para não contrariar! Tentaram me apresentar o Spaghetti Hoops! Italianos, por favor, pulem as próximas duas linhas. Foi uma das coisas mais bizarras que já vi no Reino Unido. Anéis de massa com molho vermelho, ultra processado e enlatado. Come-se sobre um toast para curar a ressaca. Felizmente, consegui me refugiar nas tortas (Pie & Mash) e dizer que há algo para se apreciar na culinária britânica. São boas mesmo.

Londres continua austera, caprichosa, desorganizada, mas me ofereceu muita coisa. Nem saberia por onde começar. Aqui assistimos de perto as passeatas mais emocionantes contra o Brexit. Presenciamos protestos brasileiros embalados ao som de Bella Ciao contra o genocida. Enfrentamos a burocracia para pedir visto pós-Brexit (pre-settler). Cantamos Beatles com um pianista meio bêbado na estação St. Pancras, voltando do interior em um domingo à noite. Dirigimos desastradamente do lado direito. Encaramos os trens lotados no verão para Margate, só para pisar na praia. Aprendemos a apreciar a proximidade com Canary Wharf. Aquele centro empresarial sem identidade se transformou numa alternativa prática para encontrar qualquer produto de qualquer canto do mundo. Amei e odiei Londres todo santo dia. Quatro anos depois ainda não superei essa dualidade. Vivi enquanto era possível uma maratona pelo Stansted, London City e Heathrow. Sempre dividida entre a Alemanha e Reino Unido, equilibrando vida pessoal e profissional. Tentando, pelo menos. Aos poucos, as estruturas complexas da gramática alemã foram cedendo espaço à simplicidade do inglês. “Quem te viu, quem te vê”, escutei recentemente de uma amiga. Não confessei que ainda escuto rádio alemã (a Deutschlandfunk) e estou reconsiderando assinar novamente a Der Spiegel.

O mundo mudou. Minha percepção se alterou. A rispidez londrina estranhamente se transformou em um certo acolhimento. Foi aqui que passei o ano inteiro praticamente em quarentena. Exagero dizer que sobrevivi esse período em Londres. A vida se restringiu, de fato, ao distrito de Tower Hamlet. Há um ano, o retrato de Canary Wharf observado da minha janela é musicado com sirenes de ambulância. Uma imagem bem diferente do réveillon que antecedeu a crise, quando um grupo de amigos gritava, estourando espumantes em frente ao conglomerado empresarial. Daí, seguiram-se encontros temerosos nas fases de afrouxamento das regras, piqueniques, terapia em grupo com reféns da capital. Fomos voluntários da universidade de Oxford. Testes de covid semanais, depois mensais. Agora, conforme a vacinação avança, passaram a pedir amostras de sangue para medir os anticorpos e a imunidade na população. De tudo que Londres me deu, a possibilidade da vacina foi a que mais me marcou. É difícil entender como o NHS que perde resultados de exames como clipes de papel, levantou todos os centros que vemos pela cidade. Apesar de todos os problemas políticos, as coisas estão caminhando. Até mesmo Boris Johnson reconheceu a gravidade da pandemia.

Mas nem tudo vem sem surpresas. Ainda no meio desse caos, chegou a hora de se despedir, mesmo que parcialmente. Entregamos o apartamento, começamos a organizar a mudança, encaixotamos a vida para guardá-la no Yellow Self Storage. Deu um certo receio mudar no meio da pandemia, derramar a vida por aí mais uma vez. Trabalho, convênio médico, família, pertences pessoais espalhados por lugares diferentes e cada vez menos acessíveis. Pior, perderíamos o agendamento da vacina. Ansiosa, desci aqui no centro de vacinação perto de casa, com passagem em mãos, comprovante de endereço, registro médico. Uma viagem boba de três horas virou uma epopeia. Achei que fosse receber um baita sermão no centro de vacinação, mas o atendente pediu para entrarmos na fila das “sobras” (as famosas spare doses que vão para o lixo no fim do expediente quando as pessoas não aparecem). Ele sabia de alguns cancelamentos naquele dia, mas frisou que não poderia prometer absolutamente nada. Tentei a sorte. Havia três pessoas na frente. Atrás de mim, uma moça precisava ir a Hong Kong visitar o pai que estava muito doente e perderia por conta da viagem seu agendamento. 

Em alguns minutos chegou um rapaz da Romênia que também queria muito ver a família depois de meses. É estranho, mas foi uma das primeiras vezes que Londres me passou uma sensação de humanidade. Indivíduos imbricados nesse caos, levando vidas completamente diferentes e paralelas. Todo mundo ali, dividindo problemas, tentando a sorte. O farmacêutico saiu, contou oito pessoas e disse ao atendente que organizava as filas – “ainda dá para aceitar mais dois, caso apareçam, há dez doses disponíveis”. Os desconhecidos ali só não se abraçaram por razões óbvias. Mas sorriram um para os outros, comemoraram, trocaram olhares alegres. Alguns olhos marejaram. Enquanto esperava o cadastro, a BBC mostrava o enterro do príncipe Philip, duque de Edimburgo. Fui embora sem saber se o garoto da Romênia conseguiu tomar a vacina. De umas semanas para cá, só acima dos trinta anos. Queria mandar uma mensagem pros meus primos caçulas e dizer – “viu como tem vantagens ser anciã”?    

Agora com quase tudo resolvido, já estou com saudades. Encaixotei a vida, fiz as malas. Iniciei meu processo de despedida. Deixei alguns livros de fora. Separei um dos diários da Anais Nin, aquele em que ela deixa seus escritos e objetos pessoais em Paris e embarca para Nova York durante a guerra. Também separei livros que me ajudarão a entrar no clima da nova cidade. Mas, por hora, ainda estou aproveitando os últimos dias londrinos (esquisitamente ensolarados, fico até desconfiada). Já comecei a sentir falta dos mastros dos barcos na bacia de Limehouse. Das caminhadas pelos canais. De alimentar as gaivotas e ver o pôr-do-sol no Tâmisa. Do curry verde de camarões do chinês da feira. De andar de DLR. Dos piqueniques do Mile End Park. Da comida afegã do restaurante Ariana que levávamos para viagem. De pular na bacia Shadwell no verão e ficar com medo de pegar vermes. Dos beigels da Brick Lane. De tomar café em Canary Wharf. De pedalar sem rumo por horas na madrugada. Da indecisão para escolher o Gin Tonic. Talvez até do cheiro da fritura do Fish & Chips. 




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