quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Os sonhos do Muhammad

         
         Este não é meu primeiro post sobre desejos alheios. Já escrevi um contando sobre sonhos estapafúrdios de amigos, conhecidos e pessoas bem próximas. http://pekuliaridades.blogspot.de/2012/05/o-sonho-dos-outros.html. Mas eis que desta vez não me contive em falar de novo da vida dos outros e compartilhar os anseios do Muhammad. E antes que alguém feche a janela, cansado dessa discussão sobre o filme da inocência muçulmana, isso aqui não tem nada a ver com o profeta. O Muhammad é um jovem de 21 anos, com cara de garoto e comportamento de homem “de honra” como diria minha avó. Ele mora com a família em Hebron, na antiga avenida Al-Shuhada, cercado por assentamentos de colonos judeus. Sua casa é uma das únicas naquela rua fantasma, hoje chamada de Abraão. Todas as outras propriedades foram fechadas e confiscadas ao longo dos anos com a chegada dos colonos. Uma das ocupações do jovem é sua loja de cerâmica na garagem da residência, bem em frente a um posto de controle, cercado de soldados israelenses. Aliás, ele já está acostumado ao escrutínio ferrenho, afinal, o direito de ir e vir por aquelas bandas é um pouco complexo. Estima-se que, bem no coração da cidade antiga, haja 400 colonos e cerca de 5 mil soldados para protegê-los. Os palestinos que restaram naquela região, como o Muhammad, precisam ser revistados três vezes, em diferentes pontos, só para chegar à Mesquita do Abraão.  

Muhammad já ficou mais de três horas em um posto de controle por não dizer seu nome, já levou uns safanões de colonos, spray de pimenta no rosto, passou por interrogatórios antes de cruzar o check point para o hospital e tantas outras coisas que fazem da sua vida um roteiro de documentário do conflito Israel-Palestina. Apesar da pouca idade, ele é casado com uma moça de Belém e, como a renda da lojinha não é lá essas coisas, Muhammad oferece almoços para turistas em Hebron. Na verdade, a mãe e a esposa preparam o rango e ele recebe os visitantes, responde perguntas, conversa e conta sobre o seu dia a dia. “Estava boa a comida”, pergunta. “Que bom, mas não fui eu que fiz”, confessa. Já ofereceram dinheiro pela casa da família dele, mas o pai recusou. Já conformado, Muhammad fala que não entendia a recusa do seu progenitor, afinal ele tinha tantos sonhos e a quantia de dinheiro oferecida seria suficiente não só para deixar aquela cidade, mas também realizar outros projetos. Seria a solução para uma rotina longe daquele distrito dividido em diversas áreas administrativas, dos postos de controle a cada quilometro e da humilhação imposta pelos colonos.
Hoje ele compreende um pouco mais. “Não posso e não vou fugir”, diz. “Essa é a minha casa, minhas raízes estão aqui”. Uma holandesa pergunta o que ele quer ser. Ele dá de ombros. Como assim ser alguma coisa? Ele tem uma lojinha, a visita dos turistas, a esposa, aprende inglês por meio de filmes e é essa a sua vida. De jeans, camiseta, um sorriso maroto, ele diz que não reza as cinco vezes por dia e conta como ele conheceu a esposa no dia do casamento. Relata tudo com muita naturalidade. “Aquela é a minha avó, a quarta esposa do meu avó”, diz, apontando para um retrato de uma senhora com a cabeça coberta por um lenço florido rosa e óculos enormes de armação redonda. Cercado por olhares incrédulos de estrangeiros, um pouco mais desprendidos em relação à família, raízes ou religião, o Muhammad, no fundo, só sonha em levar uma vida normal. Ali mesmo, sem ter que ir embora pra isso.    

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