sábado, 31 de março de 2012

Um outro olhar


       Nunca gostei muito de cemitérios. Também conheço poucos que gostem. Se tiver tumbas, pior ainda. Coisa de mal gosto, macabra. Tudo bem, já encarei o Père-Lachaise em Paris para visitar o Morrison, o Kardec, a Piaf, além de outros cemitérios por aí. Os da Escandinávia parecem parques. São até bonitos. Mas depois que meu pai faleceu, passei a freqüentar mais e por outros motivos (pelo menos enquanto estava na cidade) o condomínio daqueles que se foram. Desculpe pelo eufemismo! Fato é que, ao longo de tantas idas e vindas, comecei a notar coisas curiosas, intrigantes e até, por que não, engraçadas.

       Sem sacanagem, os “vizinhos do meu pai” se chamam Virgulino e Brisolino. Percebi essa esquisitice quando estava arrumando as flores no chão e não consegui imaginar o quão “puto” meu pai ficaria se soubesse disso. Pois bem. Também juro que não é brincadeira: o coveiro encarregado de regar os vasos de flores do meu pai durante a semana, até o próximo domingo, se apresenta como o “Sombra”. Mesmo a administração do cemitério se refere a ele assim.

       Comecei depois disso a olhar algumas placas para ver se achava mais nomes engraçados. Não tive lá muito sucesso. Acabei encontrando mesmo um casal que morreu junto no mesmo dia. Só pode ter sido acidente, né? A poucas quadras dali, está um bebê que viveu menos de um mês e seu irmão gêmeo que agüentou somente alguns dias a mais. Siameses que não sobreviveram a cirurgia da separação? Eu sei que é feio especular sobre a morte alheia, mas está lá bem no meio do caminho. Parece estranho, mas dá para elucubrar bastante sobre a vida dos que partiram só pelo que as famílias deixam sobre suas novas casas: ursinhos de pelúcia, cata-ventos, sapos de gesso, plaquinhas de madeira e por aí vai. Acho todas as coisas muito simpáticas. Cada qual com seu estilo. Mas tenho que admitir minha repulsa pelas flores de plástico. Será que é tão difícil assim lidar com a morte que precisamos desses objetozinhos irritantes, exibindo sua fria eternidade?

         Em uma das minhas visitas fui surpreendida por uma salva de palmas. Enquanto eu conversava com o meu pai, ocorria um enterro alguns metros dali. Os aplausos serviam de trilha sonora para a descida do caixão. Minutos antes, quando a família subia a rampa em procissão rumo a sepultura, tive que dar uma cotovelada no marido que  olhava a cena atônito e ameaçava rebolar os quadris cantarolando: “e atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”. Sei lá, né! Cada louco com a sua mania. E por falar em louco, em um outro velório de um conhecido, a família substituiu as palmas pela canção “Maluco Beleza”. A terra caía sobre o caixão e os amigos cantarolavam: “Enquanto você se esforça pra ser um sujeito normal”... A pedido do próprio falecido, ainda em vida, lógico! No dia do velório do meu pai (que muito estranhamente aconteceu no dia do aniversário da minha mãe), acho que enterraram algum fanático por escola de samba. Pelos menos a bateria estava toda lá em peso. Não, eles não soltaram o samba. Pudera! Mas só davam no tambor (Bummm) de forma mais cerimonial. Sambista ou budista, sei lá.

           Fiquei pensando agora como não seria entrevistar o Sombra. Se eu, em apenas três semanas, vi tantas coisas assim, imagina ele com vários anos de carreira e expertise! Pautinha para dia de finados? Não, sério. Cada um deve ter lá o seu jeito de superar a dor, não? Eu, por exemplo, desci até a floricultura do cemitério e pedi um buque de rosas para presente. Rosas vermelhas, grandes e cheia de fitas. Quando o pobre funcionário percebeu que eu ia subir sentido às campas, olhou assustado para a chefe e exclamou se justificando: “ela disse que era presente”! A moça posicionada bem em frente ao caixa riu e respondeu: “não deixa de ser, não”! Piscou e apresentou a facada. Nunca compre flores no próprio cemitério! Dava para ter bancado uma caixa enorme de chocolates da Kopenhagen, apesar do presente não ser apropriado para a ocasião.

        Em uma visita a um cemitério em Stockholm, indicado pelo guia Lonely Planet, passamos por um túmulo com a foto de um belo rapaz. Foi inevitável. Paramos lá em frente e começamos a comentar que só poderia ser acidente de carro e como a vida, às vezes, é ingrata. Não ficamos ali mais que alguns segundos, quando demos de cara com a família do moço. Fizemos um sinal da cruz, trocamos olhares e saímos sem falar nada para que eles não notassem nosso perfil de turista curioso. O pai, a mãe e possivelmente o irmão abriram as cadeiras de plástico (tipo de praia) e sentaram lá com o filho. No Père-Lachaise uma moça misteriosa, bonita, com batom vermelho e véu na cabeça colocava comida sobre uma das tumbas!

         Bom, e hoje a família está reunida (novamente!) para velar a bisa que depois de dar com o “pau de macarrão” em muita gente, resolveu ir cozinhar (aos 92 anos!) spaghetti com braciola no céu. Se alguém ver mais alguma peculiaridade por lá, não esqueçam de compartilhar! Rá!
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Obs.: não citarei nomes para não invadir a esfera privada alheia. Mas daria um outro post sobre pedidos estranhos que sempre escuto: ser enterrado de meias, servir pão de queijo e vinho quente no velório, ser doado para faculdades de medicina, repousar direto na terra sem caixão e por aí vai! Ainda perguntarei ao Sombra se ele já foi testemunha de outras bizarrices!

quinta-feira, 29 de março de 2012

Do Cáucaso ao Afeganistão

Para segurar a franja caída na testa, a senhora na faixa dos 40 anos usava um lenço azul marinho com flores coloridinhas. Enquanto abria a massa sobre uma mesa verde musgo, cheia de farinha, dava instruções às outras garotas. As explicações eram curtas, dadas somente por meio de palavras soltas, não chegavam a formar uma frase completa. Edilia vem do Cáucaso, mora em um apartamento para refugiados com os três filhos homens e o marido, em Weimar, na rua Ettersburger. “Tenho quatro filhos, porque meu marido também é como uma criança”, diz. Sobre os problemas em sua região, ninguém entra em detalhes. É difícil identificar pelos traços se ela poderia vir da Tchetchênia, da Óssetia do sul ou do norte. Dona de traços marcantes, semelhante aos da Glória Pires, ela está mesmo preocupada em preparar seu Pelmeni, aquela massa cozida, recheada com carne, e coberta por molho branco azedo. Ela trouxe um livro de receitas russas para mostrar às amigas.
Uma delas, do Afeganistão, ajuda a cortar a massa em rodelas. Como não há fôrmas apropriadas, ela usa mesmo a boca de um copo de vidro. De tempos em tempos, Edilia mostra como se faz, ressaltando que é preciso pressão para conseguirmos círculos de massa bem definidos. De cabelos pretos enrolados, na altura dos ombros, a moça do Afeganistão ajuda na preparação da guloseima sobre saltinhos pretos, bem arrumada de calça jeans e blusa verde limão. Um leve batom avermelhado marca seus traços, pelo menos até começar a comilança. Ela tenta me ensinar a pronunciar seu nome corretamente. Uma outra garota do Afeganistão,  bem magrinha, de pouca estatura e com olhos um pouco mais puxados, dá risada da minha pronuncia horrível. Edilia só escuta e comenta: “olha aí as duas terroristas amigas do Osama”. Elas riem. Rapidamente Edília pergunta às colegas do Afeganistão se elas realmente acreditam que Bin Laden esteja morto. “Pra mim ele continua escondido, mas agora lá nas montanhas do Paquistão”, diz contundente. Silêncio. Assunto complicado transmitido em alemão por falantes do russo e do persa. Ruído na comunicação. Todas se focam novamente na preparação dos pelmenis.
Trata-se de um dia de diversão. Duas vezes por mês, elas se reúnem (sem os maridos) para uma tarde de receitas e bate papo. Problemas políticos e burocracia não entram na pauta. Os únicos homens que caminhavam pela sala, tinham um e três anos. Um deles era filho de uma moça do Irã. Quieta, ela só observava. De vez em quando, conversava em persa com as duas companheiras do Afeganistão. Ao notarem minha cara de perplexidade, elas me explicaram as semelhanças e diferenças entre o persa de cada região. Algo como o alemão na Suíça ou na Áustria. A Iraniana balbuciava poucas palavras na língua germânica. A Anne, que acompanha as reuniões, tentava marcar uma excursão para o próximo mês. Com olhar de interrogação, a afegã, segurando o filhinho no colo, perguntou o que era uma excursão. Depois de tudo esclarecido, elas traduziam em persa para a iraniana do jeito que dava.
Nessa altura do campeonato, Edilia já estava jogando seus pelmenis na água quente. Quando voltou à mesa cheia de farinha, uma das moças já tinha aberto a outra massa. Ela olhou, amassou tudo com as mãos, fez outra bola e começou a abrir a massa de novo. “Estava muito fina”, reclamou. Quando terminou, raspou as mãos umas nas outras, as bateu no avental, olhou pra mim e disse: “como você não é alemã?”. Atordoada porque eu tinha pele clara, ela ouvia uma das alemãs explicar a miscigenação do Brasil. “Mas você sabe sambar, então?”. Tive de decepcioná-la mais uma vez. “Eu sei, as mulheres (normais) não fazem isso, né?”. Como não entendi bem qual a definição de normal disse que não sabia bem. 
Depois de todas se sentarem à mesa, com exceção de Edilia que não parava de limpar e cozinhar mais e mais, todas voltaram pra conversa. Mesmo de longe, a cozinheira oficial vinha à mesa dar alguns conselhos. “Você deveria ter mais um bebê”, disse a iraniana, que chacoalhava a cabeça em tom de negativa. “Esses garotos crescem, saem por aí com as mulheres, e não querem mais saber das mamas”, esclareceu a razão do conselho. Perto das 19h30, elas limparam tudo voando. Uma varria, a outra lavava as louças, outras embrulhavam os 50 quilos de comida que sobrara. Muitas delas não ficam fora de casa à noite. As quatros mulheres saíram então correndo, com sacolas e carrinhos de bebês em direção ao ponto de ônibus. Agora só no próximo mês.